A Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, foi criada para atender pequenas emergências como gripes ou infecções estomacais, mas nos últimos meses passou a receber cada vez mais pessoas baleadas e a ter tiroteios como trilha sonora. Esta pequena unidade pré-fabricada no meio da comunidade se converte, praticamente, em um hospital de campanha aos finais de semana.
Na sexta-feira, 7 de julho, às 22h, o primeiro baleado entrou cambaleando: um homem de 38 anos com um tiro na mão, marcas por todo o corpo e que deixou um rastro de sangue em seu caminho até a sala de emergências.
Enquanto os bebês com febre choravam e alguns idosos aguardavam para ser atendidos, médicos e enfermeiros se apressavam para fornecer os cuidados iniciais para depois poder transferi-lo rapidamente a um dos hospitais próximos, com os equipamentos de cirurgia necessários, mas distante da comunidade.
A cena voltou a se repetir na madrugada de segunda-feira, 17, ainda de forma mais dramática. O intenso tiroteio durante ação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) contra os traficantes paralisou a comunidade, fechou escolas, mas não impediu o funcionamento desta UPA 24 horas.
Com somente quatro camas em sua “sala vermelha” de emergência, três baleados chegaram ao local quase simultaneamente. Sem hesitar em meio ao fogo cruzado, a equipe estabilizou a situação e transferiu ao hospital um jovem de 17 anos com um tiro no peito, um homem de 63 anos com um tiro no abdômen e uma idosa de 82 anos que recebeu um tiro no tórax enquanto dormia.
“No momento, nós estamos exercendo uma medicina de guerra, literalmente, já que, além dos baleados, as unidades estão localizadas dentro de zonas de conflito”, contou Luiz Alexandre Essinger, diretor médico da RioSaúde, entidade que faz a gestão da UPA, uma das 14 criadas pela Prefeitura do Rio desde 2009.
O aumento dos tiroteios e da violência após a Olimpíada pode ser percebido nos atendimentos a pessoas feridas por tiros nos sete hospitais municipais do Rio: os casos passaram de 720, em 2015 (média de 60 por mês), para 1.652, em 2016 (média de 137,6 por mês). Nos três primeiros meses de deste ano, esse número já era de 593 (média de 197 por mês), segundo a RioSaúde. Equipes de algumas unidades recebem treinamentos de atenção a baleados com bonecos-robô.
Os números de baleados são menores do que nos anos 90, mas a gravidade dos feridos é maior devido à maior potência das armas usadas atualmente. Os centros médicos, como a UPA da Cidade de Deus, já quase não recebem baleados por revólver ou pistolas de nove milímetros, mas em sua maioria por fuzis. “Antes chegava um paciente baleado, mas na maioria das vezes vivo. Hoje, muitas vezes, chega morto”, resume José Roberto Figueiredo, chefe médico na Cidade de Deus.
Funcionários deixam o local
Situações de grande tensão ocorrem na UPA da Cidade de Deus, com policiais buscando criminosos ou traficantes armados. Muitos funcionários não aguentam a pressão, apesar do salário competitivo. Três deixaram a UPA em junho por ‘medo’ e, a cada vez que abrem vagas, as dessa unidade são as últimas a serem preenchidas.
Iara Viana, médica de 27 anos, lembra ainda nervosa como, no final de 2016, a equipe ficou presa e não conseguiu trocar o turno depois que o Comando Vermelho ordenou toque de recolher, bloqueou ruas e trocou tiros com a polícia por horas. Apesar de tudo, ela continua lá. “É gratificante, no final de tudo, poder ajudar a população, as pessoas carentes que precisam realmente. Aqui dá a impressão que nós somos mais médicos, médicos de verdade”, afirma Iara.
Os moradores não aguentam mais. “Dá vontade de ir embora para sumir daqui, a gente não está aguentando mais não, tem muita violência”, lamenta, na sala de espera do local, Rogéria Brites, cozinheira de 57 anos.
Fonte: O Dia