Desistir nunca fez parte dos planos da médica Miriam de Moraes Viegas, 39, uma das primeiras indígenas a se formar na profissão no Brasil. Nem mesmo quando uma professora do curso de medicina da Universidade Estadual de Londrina (UEL), onde se formou no final de 2016, sugeriu que ela e a irmã, aluna na mesma sala, voltassem para a reserva de onde vieram —já que, admite Miriam, as dificuldades para acompanhar a turma não eram poucas. Para a docente, o ambiente acadêmico não era a “tribo” das duas jovens.
A irmã de Miriam, matriculada também em medicina, e a mãe, aluna de odontologia na mesma universidade, não concluíram os cursos. Desistir, ainda mais com um curso integral e uma filha então com pouco mais de um ano para criar? Para Miriam, nem pensar.
A reportagem de Universa conversou com a médica, que vive no litoral sul de São Paulo e enfrenta uma jornada de trabalho que faria muitos colegas de profissão desistirem, ou sequer tentarem vaga do tipo: ela atende, como única médica da equipe, nove aldeias indígenas -uma tupi e oito guaranis-, não raro em áreas de difícil acesso e com uma população aproximada de 520 pessoas de todas as faixas etárias.
Na universidade, sob a chancela do cacique Miriam conta que morou até os 15 anos na Reserva Laranjinha, no norte do Paraná. Filha de mãe indígena e de pai branco, foi viver com ele em São Paulo por um tempo, para tentar uma experiência diferente no ensino médio, mas manteve as visitas à família na reserva.
Anos depois, em 2011, tentou o Vestibular dos Povos Indígenas do Paraná junto com a irmã, que, como a mãe, já havia se mudado para Londrina e também queria estudar medicina. A mãe acabou seguindo odontologia, mas parou no quinto ano. Das seis vagas ofertadas naquele ano pela UEL no vestibular indígena, duas ficaram com Miriam e a irmã.
A seleção é específica para alunos que se autodeclaram indígenas, apresentam documentação que comprove pertencimento a alguma terra indígena no estado -em geral, assinada por um cacique— e não tenham feito outro curso universitário.
As vagas, no entanto, são as do tipo excedentes. Ou seja: a sobra das vagas gerais, disputadas no vestibular anual de cada instituição.
Mulher, mãe, solteira, indígena… médica?
“Na época em que prestei o vestibular, minha filha estava com um ano e três meses. Achei que seria puxado seguir medicina. Mulher, mãe solteira, indígena… médica? Eu sabia que enfrentaria preconceito, mas decidi ir em frente porque estava junto com minha irmã e minha mãe”, diz.
“Eu e minha irmã tivemos muita dificuldade, mas dávamos forças uma para a outra. Em uma turma de mais de 80 alunos, a imensa maioria vinha de escola privada ou de anos de estudo em cursinho pago. Foi difícil ter o reconhecimento da turma, pois muitos achavam que tínhamos roubado as vagas regulares e expressavam certo rancor sobre isso. Felizmente, tive os amigos que me abraçaram e me ajudaram, embora sempre pairasse sobre nós o mesmo olhar: ‘Elas não vão aguentar, serão desistentes'”, diz.
Um desses olhares de desconfiança acabou sendo verbalizado pela professora que, com a sala cheia, quando Miriam solicitou monitoria para ela e a irmã, disse que seria mais adequado que retornassem à aldeia. “Foi humilhante e um dos piores momentos de todo o curso. Pensei mesmo em desistir. Tenho primas indígenas que enfrentaram preconceito e desistiram. Minha mãe tinha as notas do mural circuladas com caneta vermelha, provavelmente por outros alunos, e também não acabou o curso. Tirei forças disso e me senti na obrigação de provar que éramos capazes de ocupar qualquer espaço que não apenas o da aldeia”, conta. “Até porque, quando os caciques assinam o documento que nos permite prestar o vestibular indígena, esperam algum retorno para a aldeia. E eu sei a necessidade que nosso povo tinha desse atendimento médico”.
Indígenas têm baixo peso -especialmente em férias escolares
Hoje, quatro gerações vivem sob o mesmo teto, em Peruíbe, na Baixada Santista: Miriam, a mãe, a avó e a filha pré-adolescente. Miriam é médica da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), órgão do Ministério da Saúde que coordena a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI). No litoral sul paulista, ela percorre, de segunda a sexta, nove aldeias indígenas da região.
Os problemas de saúde mais encontrados, segundo ela, são doenças gripais, infecções por vias aéreas e, no caso de crianças, desnutrição ou baixo peso -especialmente em períodos de férias escolares. “Como a maioria desses indígenas não tem um trabalho, a principal refeição de suas crianças acaba sendo na escola. Daí o baixo peso no período sem aulas.” Embora os remédios e vacinas sejam os mesmos aplicados fora de territórios indígenas, a médica explica que ali é preciso um olhar diferenciado, já que questões culturais ancestrais, em geral, determinam a receptividade (ou não) ao tratamento. “Por mais que o indígena esteja mal, a primeira consulta é sempre com o pajé, que cuida que cuida sobretudo da parte espiritual. Ele segura até onde dá. Depois, se preciso, entra o médico”.
Uma negociação inusitada com pajé e hospital
A médica conta quando encontrou um bebê em situação de grave subnutrição, há dois anos, em uma das aldeias que atendia. Ela sabia que precisava internar a criança, que corria sério risco de morte, mas, como índia guarani, sabia também que a aldeia não abriria mão do trabalho do pajé.
“Eu entrei em conflito. Entendo o quão forte para nossa cultura é o atendimento espiritual e o quanto a morte é encarada de forma diferente de como é pelo branco. Para nós, não se trata de uma perda, mas de um descanso para a alma. Então, o que tiver de acontecer vai acontecer”.
Por outro lado, ela ressalta, agora tinha “o conhecimento do branco” —expresso sobretudo no juramento ético de uma profissão que promete a defesa da vida do paciente. “Nessa condição, eu não podia deixar de salvar aquela criança. O jeito foi aceitar que ambas as coisas fossem feitas: conversamos com o pajé, para que ele fizesse a pajelança no hospital, e conversamos com a equipe do hospital, para permitir que a pajelança fosse feita lá. Aceitaram, desde que atividade fosse sem fumaça, ou seja, sem o petynguá, que é o cachimbo sagrado do pajé”, conta.
De acordo com a cultura guarani, a fumaça sagrada do petynguá é o meio pelo qual o pajé, liderança espiritual, consegue se comunicar e interpretar as mensagens dos deuses, espíritos e ancestrais em rituais de cura espiritual. “Ajudou muito eu ter o vínculo indígena e a aldeia saber que eu não os estava desrespeitando ao querer internar a criança, mas tentando salvá-la”, diz.
Fonte: Universa/UOL