“Uma vez excitados, os espíritos não mais se detêm”[1]. Esta é a famosa frase de Voltaire ao narrar, na obra “Tratado da Tolerância”, um dos maiores casos de intolerância religiosa e preconceito ocorridos na França do século XVIII, em meio à rivalidade entre católicos e protestantes.
Um pai protestante, Jean Calas, é acusado falsamente do homicídio de seu filho mais velho, Marc-Antoine, e condenado sem qualquer prova ao suplício na roda. Todo o caso teve início com o grito de um popular desconhecido, dizendo que Jean Calas havia enforcado seu filho Marc-Antoine. “Esse grito, repetido, logo tornou-se unânime”[2], ao ponto de uma inverdade tornar-se “veraz”.
O suplício de Jean Calas apenas atesta que o desconhecimento dos fatos, a intolerância e o preconceito religioso criam lendas. Infelizmente, por vezes, essas lendas são mais fortes do que qualquer fato. Em relação à recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová, mutatis mutandis, não tem sido diferente.
É de conhecimento mundial que as Testemunhas de Jeová, em razão de suas crenças, não aceitam transfusões de sangue[3]. Em torno desse fato, certas lendas foram criadas e amplamente disseminadas nos meios médico e jurídico. Tais como o grito repetido que resultou na condenação de Jean Calas, estas lendas têm causado suplício não só aos pacientes, como aos próprios médicos. Servem como combustível que intensifica um medo que tira o sono desses profissionais: o processo. Esse medo provoca aflição e dificuldades em abordar o tema em questão.
Com o objetivo de proporcionar ao leitor esclarecido e interessado a oportunidade de exercer um juízo neutro e imparcial de ponderação, passamos a comentar alguns aspectos legais mais comuns pertinentes ao tema. Acima de tudo, visamos proporcionar tranquilidade aos profissionais da área médica em sua desafiadora atividade diária.
DESMASCARANDO A LENDA – A DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO HABEAS CORPUS N.º 268.459
Atualmente, uma das principais lendas envolvendo a recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová diz respeito à decisão do Superior Tribunal de Justiça no HC 268.459/SP, processo do qual podemos comentar com propriedade, uma vez que integramos a equipe de advogados que atuou no caso, conhecendo seus detalhes e bastidores.
Uma adolescente com anemia falciforme, no ano de 1993, faleceu em um hospital da cidade de São Vicente, São Paulo. Os pais, que temos o privilégio de conhecer pessoalmente, foram injustamente submetidos a um processo criminal por homicídio doloso sob a acusação de terem “impedido” a realização de transfusão de sangue em sua filha.
Tal acusação não resistiu aos fatos. Desde o diagnóstico, o casal sempre proporcionou assistência médica adequada para a filha, possibilitando-lhe viver com qualidade mesmo diante da grave enfermidade. Na última internação, mais uma vez os pais procuraram o hospital a tempo. Nessa ocasião, o casal apenas exerceu seu consentimento informado para que a filha recebesse tratamento por meio de um protocolo médico não transfusional. Jamais impediram qualquer tratamento reputado como necessário.
Reconhecendo isso, o STJ, ao julgar a conduta dos genitores (não dos médicos), concluiu que não há crime na conduta de pais que levam o filho para o hospital e que apenas expressam dissentimento com a realização de transfusão de sangue.
Portanto, é preciso salientar em definitivo: o caso envolvia uma menor de idade. Logo, o Habeas Corpus n.º 268.459/SP não pode ser utilizado como parâmetro para o tratamento de pacientes adultos Testemunhas de Jeová. A própria decisão do STJ deixou bem claro, nos termos de um de seus votos, que o entendimento não se aplica a adultos: “Nesse sentido, o que se tem verificado, grosso modo, é que a decisão pela recusa de sangue só estaria amparada pela liberdade religiosa caso fosse tomada por um adulto, plenamente capaz e no gozo de suas faculdades mentais, e quando este fosse o próprio paciente”. Assim, o próprio Tribunal ressalva que questões envolvendo pacientes adultos e capazes requerem outro enfoque.
Igualmente importante destacar que os médicos que trataram a jovem não foram processados pelo Ministério Público. Foram processados os pais da jovem e um amigo da família, que por coincidência era médico, porém processado não por sua atuação profissional, mas pelo seu envolvimento ao lado dos pais, como pessoa comum. Ao final, ninguém restou condenado. Nem os pais. Nem o amigo da família. E, obviamente, nem os médicos, que sequer eram partes no processo.
Como integrantes da equipe de advogados que atuou neste processo, preocupa-nos a maneira despreparada ou extremista como alguns artigos interpretam a referida decisão, instilando mais medo e promovendo desagregação. Um destes artigos[4] menciona que a decisão foi tomada pelo “Supremo Tribunal de Justiça”, o que revela, com o devido respeito aos seus subscritores, total despreparo para comentar o julgado. Tal Corte não existe em nosso sistema judicial. Antes, na cúpula do Poder Judiciário temos o Supremo Tribunal Federal (STF), afeto às matérias de índole eminentemente constitucional, e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que trata de matérias pertinentes à legislação federal e à uniformização de jurisprudência. Neste segundo é que foi julgado o referido caso.
A alegação de que essa decisão do STJ, envolvendo um menor de idade, delimitou a tutela do Estado sobre o tema e que o médico deve desrespeitar a autonomia do paciente adulto, é enganosa e juridicamente temerária. Incita conduta que poderá culminar em problemas legais para o médico, como evidencia o recente julgamento do STJ, nos autos do Recurso Especial n.º 1.540.580/DF, julgado em 02/08/2018.
Nesse julgamento, o STJ condenou médico e hospital que desrespeitaram a autonomia do paciente, reconhecendo que o paciente tem “capacidade de se autogovernar, de fazer opções e de agir segundo suas próprias deliberações”. Nas palavras do Ministro Luis Felipe Salomão, relator para o acórdão: “o que se procura garantir é o estabelecimento de uma relação de negociação, na qual o médico compartilha os seus conhecimentos técnicos e garante ao paciente a tomada de decisões a partir de seus próprios valores, no exercício de sua autonomia.”
Na realidade, desconhecemos registro na jurisprudência brasileira que qualquer médico tenha sido condenado por deixar de aplicar sangue em paciente Testemunha de Jeová, por respeito à sua posição. Nem mesmo no âmbito administrativo do Conselho Federal de Medicina. Muito pelo contrário, conforme se verificará a seguir.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM) E A SUA POSIÇÃO CLAUDICANTE
Sabe-se que a Resolução CFM 1.021/80 impõe ao médico transfundir sangue no paciente adulto Testemunha de Jeová, mesmo sem o seu consentimento, em caso de risco de morte.
Foi criada a lenda de que esta Resolução é “lei” e que esta “lei” determina o dever de transfundir em caso de risco de morte do paciente. Neste aspecto, é inviável para um operador do Direito ficar silente. A Resolução CFM 1.021/80 não é lei e tampouco tem força de lei. É um regramento administrativo, hierarquicamente inferior à lei e, principalmente, à Constituição Federal[5]. Nenhuma Resolução ou regramento ético deve prevalecer sobre ditames constitucionais e legais, máxime quando são expressões da “dignidade da pessoa humana”.
Não é exagero afirmar que a referida Resolução, bem como outras que se alinham no mesmo sentido (como a Resolução CREMERJ 136/99), não oferecem qualquer segurança jurídica ou referência para o médico. Basear-se em suas diretrizes pode levar o médico a praticar conduta incompatível com as melhores disposições éticas, legais e constitucionais.
O próprio Conselho Federal de Medicina singra agora em sentido contrário, nos termos do Parecer CFM 12/2014[6], que estabelece em sua Ementa “a necessidade da publicação de Resolução sobre transfusão de sangue e a revogação da Resolução CFM nº 1.021/80”.
No corpo do Parecer, o eminente Conselheiro que o lavrou aponta, com propriedade e fundamento, que “(…) os ditames da Resolução CFM 1.021/80, editada na vigência da CF de 1967 e do CEM de 1965, por seu pragmatismo decorrente, à época, de limites mais estreitos dos conceitos éticos e morais e da ciência médica, são desprovidos de maiores evidências e deixam, pela amplitude de interpretação, no campo da subjetividade o critério científico do termo ‘iminente perigo de vida’, ou seja, do risco iminente de morte, bem como, não dispõe elementos técnicos precisos para os limites e parâmetros de indicação da transfusão de sangue e seus componentes, que possam orientar a terapêutica em casos específicos e individuais como os das Testemunhas de Jeová. Assim, tornou-se temerária aos conceitos morais e éticos contemporâneos e inconsistente com o progresso científico da medicina”. Afinal, o parecer termina com a recomendação: “Com substrato nestas considerações penso que urge a publicação de uma nova Resolução e consequente revogação da Resolução CFM nº 1021/80”.
A Resolução CFM 1.021/80 encontra-se também superada pela jurisprudência do próprio Conselho Federal de Medicina. De fato, o Tribunal Superior de Ética Médica do CFM, nas únicas três vezes que chamado a enfrentar o tema, em diferentes câmaras, expressou o mesmo entendimento sóbrio e coerente: o médico que deixa de transfundir sangue em paciente, respeitando sua consciência e valores íntimos, não comete nenhuma infração ética. Portanto, não merece qualquer reprimenda (Processo n.º 5.793/1998[7], Processo n.º 654/2000[8] e Processo n.º 1.251/2011).
Talvez o leitor indague: Se o Conselho Federal de Medicina julga contra a Resolução CFM 1.021/80 e entende que se trata de norma obsoleta, como afirmar categoricamente que o médico estará cumprindo com seus deveres éticos e legais se acatar seus ditames?
É preciso alertar que o apego a uma Resolução que contraria a lei e a Constituição tem levado profissionais à prática de transfusão de sangue forçada mediante atos desumanos (contenção no leito por meio de amarrações, uso de sedativos, aflição mental, etc.). Não são poucos os operadores do Direito e até mesmo membros do Ministério Público que começam a definir a conduta dos médicos que intervêm contra a vontade do paciente nesses moldes, faltando ao respeito com sua consciência, como crime de tortura, independentemente da existência de iminente risco de vida.
O mesmo se diga em relação ao Código de Ética Médica que, assim como a Resolução CFM 1.021/80, é hierarquicamente inferior à Constituição Federal e enfrenta um abismo cada vez maior em relação à legislação do país. A afronta deliberada da autonomia do paciente adulto por mera intepretação de preceitos éticos do CFM é ilegal e coloca cada vez mais o profissional de saúde em franca situação de risco jurídico.
O que fazer diante deste cenário? Em virtude da posição claudicante do CFM no assunto, recomenda-se aos diligentes profissionais de saúde que se mantenham informados e atualizados com os contínuos avanços médicos, que afinal não beneficiam apenas as Testemunhas de Jeová, mas toda a sociedade. O dever de atualização envolve conhecer e utilizar os tratamentos e procedimentos médicos que dispensam o uso de transfusões de sangue.
Novamente, o CFM mediante sua Recomendação 1/2016 declara: “(…) a conduta do médico já não pode limitar-se à constatação de risco de morte para transfundir sangue compulsoriamente, mas precisa levar em consideração as recentes alternativas disponíveis de tratamento ou a possibilidade de transferência para equipes com profissionais treinados em tratamentos através de substitutos do sangue.”[9]
Neste aspecto, a prestigiada Revista Brasileira de Anestesiologia tem publicado diversas matérias de apurado valor científico que mencionam técnicas que evitam o uso de transfusão de sangue em situações emergenciais, inclusive: “Patient Blood Management: por onde começar?” (Rev Bras Anestesiol. 2016; 66(3):333—334); “Conhecimento dos anestesiologistas sobre transfusão de concentrado de hemácias em pacientes cirúrgicos” (Rev Bras Anestesiol. 2017;67(6):584—591); “Transfusão Sangüínea no Intra-Operatório, Complicações e Prognóstico” (Rev Bras Anestesiol. 2008; 58: 5: 447-461); “Estudo randômico e duplo-cego de profilaxia com fibrinogênio para reduzir o sangramento em cirurgia cardíaca” (Rev Bras Anestesiol. 2014;64(4):253—257); “Perfil transfusional em diferentes tipos de unidades de terapiaintensiva” (Rev Bras Anestesiol. 2014;64(3):183—189); “Dois anos de experiência com recuperação intraoperatória de sangue em artroplastia total do quadril” (Rev Bras Anestesiol. 2016;66(3):276—282).
Nunca é demais lembrar que Portarias do Ministério da Saúde[10] e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME)[11] alistam procedimentos e fármacos que podem ser empregados para evitar a transfusão. Também, o Brasil se comprometeu perante a Sexagésima Terceira Assembleia da Organização Mundial da Saúde a prover treinamento para as equipes envolvidas em transfusões clínicas, com a promoção de alternativas, incluindo a transfusão autóloga e o gerenciamento do sangue do próprio paciente.[12]
E algo de extrema importância deve ser salientado: legalmente, o médico não se compromete a curar. A Medicina é considerada como atividade de meio; não de resultado. Assim, o comprometimento do médico é com o domínio de sua técnica e com o respeito ao seu paciente como ser dotado de valor próprio e autodeterminação.
Talvez um dos problemas ao enfrentar essa temática seja o fato de que a transfusão de sangue, ainda que não seja o único, é considerada um tratamento padrão e rotineiro. As campanhas que mobilizam as doações de sangue evocam sentimentos altruístas. Assim, a recusa à transfusão em razão de crenças religiosas pode ser vista equivocadamente como um ato suicida proveniente de fanatismo religioso. Mas isso não é verdade; tornou-se uma lenda. Protocolos que evitam a transfusão já são bem definidos e incentivados na prática médica.
DAS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO
Uma das preocupações dos médicos no atendimento de pacientes Testemunhas de Jeová é a propalada responsabilidade pelo crime de omissão de socorro, tipificado no art. 135 do Código Penal[13].
Todavia, este não é o entendimento da melhor doutrina[14] e jurisprudência[15].
A análise do tipo indica que a conduta punível do art. 135 do Código Penal é “deixar de prestar assistência”. Guilherme de Souza Nucci ensina que “deixar significa abandonar, largar, soltar. No caso presente, deixar de prestar quer dizer não prestar socorro”[16]. É preciso, portanto, que o paciente não receba qualquer tratamento médico ou simplesmente não seja atendido, para configurar omissão de socorro.
Além do mais, o crime de omissão de socorro só é punido a título de dolo, ou seja, é necessária manifesta intenção por parte do médico de abandonar aquele que necessita de ajuda, deixando deliberadamente de prover-lhe o socorro necessário, abandonando-o à sua própria sorte e risco.
Definitivamente, não é esta a situação do médico diligente que proporciona tratamento e presta socorro ao paciente de acordo com o consentimento informado deste. Há nítida diferença entre “deixar de prestar assistência” e tratar o paciente com o emprego de técnicas que dispensam o uso de transfusão de sangue.
Curiosamente, ainda que vez por outra se aborde esse assunto no meio jurídico, não há registro na jurisprudência de condenação por omissão de socorro médico no tratamento de pacientes Testemunhas de Jeová. Este é mais um fato que contradiz o mito.
Ainda no campo penal, há quem alegue que o médico está autorizado a desconsiderar a decisão do paciente e transfundi-lo contra a vontade em virtude do art. 146, § 3.º, I, do Código Penal, o qual prevê o “iminente perigo de vida” como excludente da ilicitude do crime de constrangimento ilegal[17].
No entanto, esse dispositivo não criminaliza a conduta do médico que respeita a vontade do paciente. Tampouco é uma autorização ou imposição para ministrar um tratamento compulsório. A excludente do “iminente perigo de vida” e a intervenção médica nessas situações sem autorização expressa do paciente se dá pelo chamado “consentimento presumido”. Isto é, quando o paciente realmente se encontra em estado de risco e não é possível saber qual o desejo deste para determinada intervenção por nenhum meio, o médico deve agir, o que é inegavelmente apreciado.
Uma situação oposta é a do paciente em situação emergencial que manifestou seu consentimento para receber determinado tratamento e recusou outro, seja de forma verbal ou por documento de diretivas antecipadas. O “iminente perigo de vida” não retira a validade da manifestação prévia do paciente[18].
Fonte: Jus.com.br