Imagine o seguinte cenário: você ou sua mulher é uma mulher grávida. Vocês moram em um área rural que fica a duas ou três horas de motocicleta da cidade mais próxima com hospital.
A última vez que você visitou um ginecologista, ele falou que há uma condição de risco para sua gestação. Um dia, você começa a sangrar muito, mas o hospital é longe demais e o especialista que você precisa só virá na semana que vem. O que você faz neste momento? Se desespera? Não.
Abre seu celular, clica em um aplicativo e instantaneamente agenda uma consulta virtual, via videoconferência, com uma ginecologista especialista. Em duas horas você é atendida virtualmente e recebe orientações sobre o que fazer.
Efetivamente, a consulta evita uma viagem longa e salva a sua vida. Incrível, não é? O único problema é que essa história é completamente falsa. Esse tipo de “teleconsulta” no Brasil é ilegal e não poderia acontecer.
A resolução nº 1.643/2002 do CFM (Conselho Federal de Medicina) restringe consultas médicas por telefone ou internet diretamente entre profissionais de saúde e pacientes. Ou seja, telemedicina no Brasil só é permitida se houver um profissional de saúde em ambas as pontas do canal de comunicação.
Com isso, fica limitado o uso de soluções tecnológicas para fazer consultas, monitorar pacientes, prescrever remédios, analisar exames e muito mais. Médicos que não obedecem esta resolução colocam sua licença médica em risco. Infelizmente, acesso à saúde é um dos maiores indicadores de desigualdade no Brasil.
Enquanto paulistanos têm acesso a quatro médicos por mil habitantes, em média, brasileiros que moram no Nordeste têm acesso à metade desse número. Em alguns estados do Norte, esse número cai até para menos de um médico por mil habitantes.
Quando falamos de médicos especialistas, 70% deles atuam hoje nas regiões sul e sudeste do país. Em alguns Estados, praticamente não é possível encontrar especialistas. Por isso, a telemedicina é uma solução tão atrativa para o Brasil.
No Reino Unido, o uso da telemedicina e do monitoramento remoto permitiu uma redução de 52% nas internações de idosos, segundo estudo da Coalizão Saúde. Estima-se um impacto de até 2% de economia do gasto total com saúde, pois a telemedicina torna os atendimentos muito mais rápidos, corta custos com espaços físicos e não há necessidade de transporte para áreas afastadas.
Além disso, a telemedicina melhora a perspectiva em relação à saúde no curto e no longo prazo para pacientes de risco, que normalmente não teriam acesso aos especialistas. Por isso, o impedimento da telemedicina no Brasil é uma tragédia. Negá-la é um dos fatores responsáveis por mortes e sofrimento de milhões de brasileiros.
Os argumentos contra a telemedicina são fracos. É verdade que há um problema potencial de fraude médica e riscos de segurança de dados. Mas esses riscos existem no mundo físico também.
Há igualmente certas “limitações” do meio digital versus presencial, mas isso não significa que não tem como criar ferramentas melhores para superar esse desafio. Por exemplo, que tal usar uma câmera dermatológica conectada via internet para auxiliar o diagnóstico de câncer de pele?
Quase todos os países desenvolvidos estão usando a telemedicina. A maioria dos países do continente africano já usa telemedicina para alcançar comunidades afastadas. E por que não no Brasil?
O que é muito promissor da telemedicina é a abrangência de aplicações. Não precisam ser apenas consultas via teleconferência. Novas tecnologias podem resolver vários problemas de saúde.
Análise de imagens e outros dados a distância (raio-Xs, MRIs, CATscans, fotos de pele, sintomas, medidas, etc.), que de certa forma já está sendo feito bastante no Brasil, telemonitoramento de pacientes com doenças crônicas e que precisam de atenção constante são alguns exemplos de soluções.
Se o Brasil quer acabar com a imensa desigualdade em saúde, a telemedicina é uma opção que precisa ser implementada de imediato.
Fonte: Folha de S. Paulo
Foto: Ernesto Rodrigues/Folhapress