Leda Pereira, de 60 anos, estava em casa no dia 15 de fevereiro quando a visão escureceu e as pernas bambearam. Apesar de morar a 50 metros da Unidade de Pronto-Atendimento (UPA), um pronto-socorro no Jardim Paulista, em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, ela não pôde ser atendida no local. Teve de ser levada às pressas a uma unidade a cerca de 5 quilômetros dali, onde ainda esperou quase uma hora para ser atendida e medicada contra uma crise de pressão baixa.
Construída em 2014, a UPA vizinha à casa de Leda nunca foi aberta. É uma das 1.158 novas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) que estão fechadas por falta de verba de custeio ou falhas no planejamento dos governos. Conforme os dados do Ministério da Saúde, obtidos pelo Estado, estão nesta situação 165 UPAs e 993 Unidades Básicas de Saúde (UBSs). Para se ter ideia, o Brasil tem hoje em atividade 538 UPAs (prontos-socorros) e cerca de 40 mil UBSs (postos de saúde).
Considerando o custo unitário médio de construção de cada um desses tipos de estrutura, estima-se que o Ministério da Saúde tenha gasto mais de R$ 1 bilhão com obras de serviços jamais inaugurados.
Na época do anúncio dos investimentos, a partir de 2008, o ministério determinou que a verba fosse exclusiva para a construção de unidades novas. “Os prefeitos não tinham a opção de utilizar esse recurso com algo considerado mais urgente na saúde, como a ampliação de uma unidade já existente. Então foram construídas várias UPAs e UBSs, algumas em cidades que nem precisavam, outras onde a prefeitura nem tinha dinheiro para custeá-las. Fazer obra é fácil, o problema é manter (o serviço) funcionando todo mês”, diz Mauro Junqueira, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
Mudanças. O próprio ministro da Saúde, Ricardo Barros, no cargo há 11 meses, reconheceu o problema e disse que a pasta está implementando mudanças na forma de investir em novas unidades. “De fato, não houve um planejamento. Além das UPAs e das UBSs fechadas, temos equipamentos novos encaixotados e hospitais sem funcionar”, afirma Barros.
A pasta informou que tem economizado recursos para possibilitar a abertura dos serviços. Segundo o ministério, nos 300 primeiros dias da gestão Barros foram economizados R$ 2,9 bilhões, parte reinvestida em 126 UPAs que não recebiam contrapartida do governo federal. Ainda no caso específico das UPAs, a pasta também flexibilizou em dezembro a regra sobre o número mínimo de profissionais exigidos para a unidade funcionar. A ideia era estimular as prefeituras a abrirem o serviço – o que ainda não teve efeito.
Descompasso. O caso das mais de mil unidades de saúde prontas, mas fechadas é, para especialistas, apenas um dos exemplos de como o descompasso entre as decisões federais e as necessidades locais têm desperdiçado bilhões de reais. Hoje, os repasses federais para os gestores locais são feitos por meio de seis blocos temáticos de financiamento subdivididos em 880 possibilidades de alocação de recursos, as “caixinhas”. O recurso, portanto, já chega ao município com finalidade preestabelecida pelo ministério.
“Estamos tentando mudar esse formato dos repasses. Não tem sentido ter seis blocos de financiamento divididos em mais de 800 tipos de alocação. A nossa proposta é repassar a verba em apenas duas modalidades – custeio e investimento –, para flexibilizar o uso pelo gestor local”, disse Barros ao Estado.
“A gente tem um Poder Executivo muito centralizador não só no orçamento, mas na normatização. Isso não é bom para a saúde, não é bom para nada. O papel do ministério não deveria ser o de construir prédio ou de engessar a atuação dos municípios, mas, sim, de orientar as ações locais e monitorar sua qualidade e efetividade”, diz a sanitarista Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
‘Dá dó. Já pintaram várias vezes, mas ela nunca é inaugurada’
Moradores do Jardim Paulista, em Guarulhos, vizinhos da UPA fechada, revoltam-se ao ter de procurar unidades mais distantes e lotadas para conseguir atendimento de urgência na cidade da região metropolitana. “Enquanto tem um prédio novinho sem uso a uma quadra da minha casa, eu tive de esperar quatro horas na semana passada, com a pressão em 19 por 13, para ser atendida na policlínica”, conta a dona de casa Marlene Rodrigues dos Santos Gomes, de 71 anos, referindo-se a outra unidade de pronto-atendimento municipal, localizada no bairro Paraventi, a cerca de três quilômetros da UPA.
Ela conta que, no dia em que procurou a policlínica, havia apenas um médico para atender dezenas de pessoas. “Demorou muito tempo porque chegou uma pessoa esfaqueada e todo o restante teve de esperar”, relata a idosa.
Outra reclamação dos moradores é sobre a dificuldade de acesso ao pronto-atendimento mais próximo. “Mesmo que a policlínica não seja tão distante, ela é fora de mão. São dois ônibus, demora mais de uma hora para chegar lá. Se abrisse essa UPA, ia ser uma maravilha”, comenta o aposentado Damião Araújo Rios, de 65 anos, que na terça precisou levar a mãe, de 92 anos, à policlínica. “Dá até dó quando a gente vê o prédio novo fechado. Já pintaram várias vezes, mas (a UPA) nunca é inaugurada. Agora já está tudo pichado de novo”.
Alívio. Também vizinha da UPA, a auxiliar administrativa Ana Lucia Rodrigues do Nascimento, de 47 anos, conta que o filho esperou 15 dias na emergência do Hospital Municipal de Urgências de Guarulhos com a perna quebrada até conseguir passar por uma cirurgia. “Acho que se a UPA abrisse, ia dar uma aliviada nos outros prontos-socorros da cidade e íamos esperar menos tempo por atendimento”, opina.
Os moradores ainda criticam a falta de planejamento do governo federal e da prefeitura de Guarulhos em construir uma unidade sem ter a certeza de que teriam como financiá-la. “Imagina o tanto de dinheiro público que foi colocado aí. E agora virou um elefante branco”, argumenta a funcionária pública Ana Beatriz Gomes, de 63 anos.
Guarulhos tem duas UPAs novas fechadas. Em todo o Estado de São Paulo, são 30 UPAs e 96 UBSs sem funcionamento.
Questionada, a prefeitura de Guarulhos confirmou que as duas UPAs não foram inauguradas ainda porque a gestão anterior não fez a previsão orçamentária para a abertura das unidades. Disse ainda que trabalha para colocar a UPA Jardim Paulista em funcionamento até junho. A outra unidade, localizada no bairro Cumbica, deverá ser aberta até setembro. A prefeitura destacou ainda que a cidade conta com três hospitais municipais e sete serviços de pronto-atendimento.
96% das cidades investem mais do que o mínimo exigido
A insuficiência das verbas federais para o custeio de serviços de saúde tem feito as prefeituras dependerem cada vez mais de receita própria para manter unidades em funcionamento. A Lei 141/2012 determina que os municípios invistam no mínimo o porcentual de 15% de sua arrecadação em ações de saúde, mas 96% das cidades já destinam mais do que isso para o financiamento do setor, segundo levantamento inédito feito pelo Estado com base nos dados de 2016 do Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops).
Dos 5.570 municípios do País, 129 investiram em 2016 até 15% na saúde, 2.260 aplicaram de 15,1% a 20% e outros 2.716 gastaram de 20,1% a 30% no setor. Há ainda 379 prefeituras que aplicaram mais do que o dobro do índice obrigatório. Os dados de 86 cidades não foram informados.
“Hoje os municípios não têm capacidade de investir mais. Por isso, a gente orienta os gestores a nem abrir os serviços novos. E não é só nesse caso de novas unidades que a gente vê o problema. No Programa Saúde da Família, por exemplo, o governo federal estabelece as regras e o número mínimo de profissionais, mas repassa só cerca de R$ 10 mil por equipe do programa, enquanto o custo de cada uma é de R$ 50 mil a R$ 60 mil”, diz Paulo Ziulkoski, presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Outra reclamação dos gestores municipais é a falta de autonomia das prefeituras sobre a utilização da verba da saúde transferida pela União. Do orçamento de R$ 120,9 bilhões do Ministério da Saúde em 2016, apenas 40,7% foi repassado para os municípios. Outros 14,3% foram encaminhados aos Estados e o restante ficou sob gestão do órgão federal.
Fiscalização. A sanitarista Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ressalta que é importante dar autonomia aos gestores locais, mas com rigorosa fiscalização. “Não faz sentido repassar o dinheiro no formato atual, engessado, mas não quer dizer que deva ser dado um cheque em branco. É dinheiro público e os órgãos de controle devem cobrar resultados”.