Em um período que foi de luta pela redemocratização do Brasil, as discussões sobre um novo modelo de atenção à saúde ganharam força e vez. O acesso gratuito a todos era bandeira prioritária. Hoje, 30 anos mais tarde, o Sistema Único de Saúde (SUS) é uma política pública reconhecida no mundo inteiro e consolidada não só no imaginário, mas também no cotidiano da população e dos profissionais da área.
Não por acaso, 88% dos brasileiros defendem a manutenção do sistema público de saúde como um modelo universal, integral e gratuito, assim como consta nos princípios fundamentais do SUS. É o que revela pesquisa realizada pelo Datafolha em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM).
A defesa, no entanto, não pode ser confundida com uma aprovação irrestrita do modo como, governo após governo, a saúde tem sido tratada no Brasil.
83% dos entrevistados acreditam que os recursos públicos são mal administrados
62% afirmam que o SUS não tem gestores eficientes e bem preparados
A cada eleição, novos gestores e prioridades. “Os secretários de saúde, de modo geral, são escolhidos pelo prefeito a partir de critérios muito mais políticos do que técnicos, por exemplo. Isso precisa mudar”, aponta a diretora do Simers Clarissa Bassin. Para ela, é urgente profissionalizar a gestão.
Igualdade de acesso
Até 1988, apenas quem era filiado ao antigo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) tinha acesso aos hospitais públicos. Para os demais, o atendimento só acontecia a partir das Santas Casas e de outras entidades de cunho beneficente. Buscou-se a universalidade como solução: “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, garante o artigo 196 da Constituição Federal.
Hoje, o acesso universal é uma garantia, mas o atendimento permanece desigual. A vice-presidente do Simers, Maria Rita de Assis Brasil, pontua que somos um país continental, com realidades muito distintas. Ainda assim, acrescenta que se a assistência é um direito de todos, precisa ser pensada e oferecida de maneira ampla, independentemente da localização geográfica. Contradição que reforça: três décadas após a criação do SUS, teoria e prática ainda permanecem distantes em muitos pontos. Um dos exemplos é a municipalização. “O dever de atendimento ao cidadão foi municipalizado, mas o mesmo não ocorreu com a arrecadação. A conta não tem como fechar”, destaca Maria Rita.
Clarissa defende, inclusive, que o modelo de municipalização precisa ser revisto, pois os municípios são incapazes de manter, de maneira equânime entre si, o SUS para os seus cidadãos. Ela ilustra a tese com a comparação entre as cidades gaúchas de Lajeado e Cruzeiro, separadas por uma rua. Na primeira, um hospital de ponta e um sistema de saúde que pode ser classificado como, pelo menos, razoável. Na segunda, nem mesmo um atendimento básico qualificado. São municípios diferentes, com situações díspares. “Como eu posso considerar que o sistema é único, de acesso universal, se o morador de Lajeado tem uma condição e o de Cruzeiro outra?, questiona a diretora do Simers.
Futuro em risco
Repetidamente, o subfinanciamento é apontado como um dos empecilhos para que o SUS funcione de maneira eficiente. Ao longo dos últimos anos, o debate ganhou ainda mais força com a proposição da chamada “PEC do Teto de Gastos” – aprovada como Emenda Complementar 95/2016. A definição é de que, ao longo das próximas duas décadas, o orçamento seja reajustado apenas de acordo com a inflação do período, sem aumento real.
A vice-presidente do Simers analisa que se quisermos manter os preceitos do SUS tais como definidos na Constituição, não é possível que medidas como essa sejam vendidas pelos governantes e postas em prática como única solução para recuperar o Brasil. Ainda assim, ela avalia que é impossível imaginar que o teto de gastos seja mantido por tanto tempo. “Nem que nós parássemos de implantar novas tecnologias de saúde seria possível manter o investimento estagnado”, exemplifica.
Tem jeito?
Clarissa dedicou toda sua trajetória profissional ao Sistema Único de Saúde e garante que não se arrepende da escolha, mas vê a situação como preocupante. A conclusão é de que muita coisa melhorou, sobretudo porque hoje a população conta com possibilidades mais amplas para ter conhecimento sobre suas condições de saúde.
Por outro lado, ela acredita que muitas definições importantes se perderam pelo caminho – e não é difícil perceber como se materializam na prática de profissionais e pacientes. “Sabemos que faltam leitos e precisamos viabilizar que eles existam. Mas essa demanda só é tão grande porque não temos uma atenção básica resolutiva e continuada”, defende. Garantir que o serviço funcione, efetivamente, como um rede e que o paciente possa fluir entre os diferentes níveis sem constantes interrupções talvez seja um dos grandes desafios. Mas não é possível esperar mais três décadas para que isso ocorra.
Fonte: Simers / Foto: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz