Medicina é ciência e arte. Desde os tempos de Hipócrates, já era comum se falar da prática médica como a “Arte Médica”. No entanto, hoje podemos observar na prática clínica do dia a dia a crescente desumanização da medicina, que considero a mais humanista das profissões. Tal fato sem dúvida em muito se correlaciona à prática da medicina não como uma arte. Essa constatação é quase unânime. Qual a sua causa?
Má formação médica, com cursos de medicina onde não é valorizado o contexto social dos pacientes, certamente é um dos principais motivos. A super-especialização precoce se caracteriza como uma das manifestações mais expressivas dessa situação: não é raro nos depararmos com alunos do primeiro e segundo ano da faculdade de medicina que se preparam durante os seis anos do curso para serem, por exemplo, eletrofisiologista do músculo cardíaco, dando pouca ou nenhuma importância à formação geral de um bom profissional médico. Diríamos que se formou um eletrofisiologista do músculo cardíaco, mas não se graduou um médico.
Uma vez formado o médico e transcorrido o difícil tempo da residência médica(quando factível), passam a se deparar com os problemas comuns na prática médica: carga horária excessiva, má remuneração, pressão de convênios e condições insalubres de trabalho.
Nesse tempo todo diríamos então que, em torno de 10 anos, de que forma o aluno-médico é estimulado a entender o contexto social do paciente e as condições que o levaram a se tornar “seu paciente”? Que estímulo o curso de graduação propicia a que ele mantenha ou venha a desenvolver o hábito da leitura, de ir ao cinema ou teatro, que vá a concertos; como isso tudo pode ser compatibilizado com a vida extenuante do profissional médico, ainda mais em seus primeiros anos de exercício da profissão?
Pois eu afirmo que esse é um problema sério e que sem dúvida não vem sendo levado na devida consideração diante da relevância de que se reveste.
Distanciamento médico
Muito tem se propagado acerca da formação de médicos que se apresentam como frios e distantes. Os relatos referentes à tal observação são cotidianos. Hipócrates já afirmava que alguns pacientes sentem-se melhor apenas e tão somente pelo carinho e cuidado observados no médico que dele cuida. Sabemos que isso é verdade ainda nos dias atuais: a aderência aos tratamentos preconizados pelos médicos (os complexos esquemas terapêuticos anti-tuberculose, anti-HIV e anti-hepatites são ótimos exemplos) melhora de forma considerável à medida em que os pacientes se sentem conectados a seus médicos.
Muito provavelmente o que ocorre com os médicos que acabam por perder a dimensão humanista do seu paciente é que seus cérebros encontram-se repletos de outras preocupações, sem espaço para levar em consideração a dimensão pessoal e social do paciente que se lhe apresenta. Não sei se tal plenitude é decorrente de alterações bioquímicas ou anatômicas em nosso encéfalo, mas o que sucede é que perdemos a perspectiva e o equilíbrio da situação.
Talvez tenhamos tanta informação científica incutida em nossos cérebros que acabamos por perder contato com os valores e práticas humanísticas. Sem tal equilíbrio, acabamos sendo vulneráveis à distorção de ideias, tais como aquelas segundo as quais somos obrigados a erguer barreiras diante das emoções humanas que se associam ao sofrimento e à morte de uma pessoa.
Arte médica
Será possível ensinar essa possibilidade de compaixão e compreensão? Há várias regras que tentam ensinar essa “habilidade”: contato visual, inclinar-se para a frente, tocar o paciente no momento certo. São todos mencionados como regra para que o médico demonstre compaixão pelo paciente.
Considero-os, no entanto, apenas e tão somente como manifestações exteriores, que podem facilmente serem apenas consideradas como “cenas” de uma representação. O paciente facilmente as interpretará como tal, senão conscientemente, como intuição.
Em minha opinião, a arte da medicina é impossível de ser ensinada. Bons médicos irão ter consciência de que a compaixão irá aflorar não espontaneamente, quando ele assim o quiser e for treinado para aparentá-la, mas sim será decorrente de um profundo senso de virtude e bondade, provindos de uma convicção interior componente de sua personalidade.
Dessa forma, a compaixão para com o paciente e a compreensão de sua situação pessoal e social é muito menos acessível à ciência do que para a arte. Assim sendo, creio que o despertar dos estudantes de medicina e médicos para essa realidade é fundamental para que possamos alterar o difícil panorama hoje vivenciado.
Relações humanas
Isso nos leva à procura de “modelos” a serem utilizados na educação médica; infelizmente nos dias de hoje é muito raro encontrarmos médicos e/ou professores que considerem tais observações relevantes; pelo contrário, o “sistema” de ensino e prática médica que prevalece nos dias de hoje tem em grande parte os marginalizados, privilegiando outros atributos médicos (lembremos da super-especialização que já mencionei antes).
Felizmente, há outros recursos para os quais nos podemos voltar: a arte (poemas, literatura, música, cinema, teatro etc). A arte em geral nos exibe a riqueza que envolvem as relações humanas, não tentando direcionar nosso pensamento, mas nos convidando a vivenciar outras vidas além de nossas próprias.
Esse seria, em minha opinião, o modelo ideal: todas essas formas de arte, dentro de suas peculiaridades, nos desenham e nos colocam no interior da cena, de tal forma que nos tornamos não somente testemunhas, mas os juízes e enunciadores dos princípios nelas contidos. Através dessa forma é possível dissecarmos em minúcias as várias camadas envolvidas na complexidade das relações humanas.
Arte na medicina
Essa forma de conhecimento certamente não é primariamente intelectual, mas sim essencialmente emocional. O cérebro informa, mas é a emoção que decide. Para que se motivem alterações ou se reforce um determinado padrão de comportamento, deve-se necessariamente demonstrar em ação ou em narrativa um determinado comportamento correlacionado; dessa forma o observador (pessoa que lê, está no cinema, teatro etc.) pode julgar, dando vazão a seus valores, experiência, ambições e desejos pessoais.
É nesse nível mais profundo de participação que se geram imagens vivenciadas. Quando um filme é bem feito e uma história é bem contada, por exemplo, nossa presença entre os personagens é tão real que a interação acaba por ser internalizada não como uma observação, mas sim como experiência. Quando viermos a nos deparar com situações semelhantes posteriormente, os padrões já nos pareceriam familiares — já vivenciados, poderíamos dizer — e, dessa forma, seriam menos intimidadores.
Portanto, acreditamos que o melhor antídoto para o “médico frio e distante” seria uma boa dose de cinema (ou literatura, teatro, música). Imersos na arte encontram-se os meios que nos ensinam como viver com graça em um mundo repleto de dificuldades. Como disse Platão: “O maior erro dos médicos é tentarem curar o corpo sem procurar curar a alma. O corpo e a alma são um e não são tratados separadamente”.