Considerada modelo em atenção básica de saúde, Florianópolis (SC) atrai para o SUS quem perdeu o convênio médico com a crise e até quem ainda o mantém.
Hoje, 15% dos que têm planos de saúde na cidade (um quarto da população) são atendidos na rede pública, ancorada no programa ESF (Estratégia Saúde da Família).
“O paciente diz: ‘doutor, gostei da consulta, mas tenho plano, não é justo tirar o lugar de quem precisa’. Eu falo que o lugar é dele também por direito”, diz o médico de família Diogo Luis Scalco, do centro Tapera, que concentra condomínios de alto padrão.
Nos últimos dois anos, 380 mil dos 480 mil habitantes da capital catarinense usaram a rede municipal de saúde. ”A abrangência é gigante, mesmo entre as classes média e média alta”, diz João Paulo Mello da Silveira, diretor de atenção primária de Florianópolis.
Um atrativo é a possibilidade de se consultar com médico no mesmo dia ou semana, o que nem sempre é possível com planos. Entre 60% e 90% das consultas ocorrem sem agendamento prévio, algumas marcadas por meio de telefone, email ou WhattsApp.
Outro diferencial é a busca por um cuidado que integre outras práticas. Das 49 unidades de saúde, 26 têm hortas medicinais. O centro de Lagoa da Conceição é um deles.
Dali o médico de família Murilo Leandro Marcos tira muito “remédio”. Ele conta: “Chega um jovem com dor de garganta, sem febre e nada que indique infecção. A gente pode indicar chá de gengibre com tanchagem [planta rasteira típica da região]”. Marcos também associa acupuntura e auriculoterapia na assistência.
A economista paulistana Doris Paiva, 55, mudou-se para Florianópolis e é acompanhada pela equipe do médico Marcos Marzollo. Faz acupuntura para aliviar dor crônica após tratamento de câncer de mama. “Sou alérgica a tudo, a acupuntura me salva”, diz.
É também graças à medicina de família que o aposentado Juarez Lopes, 62, hipertenso e cego por diabetes descompensada, consegue ser atendido na comunidade do Monte Serrat, região vulnerável da capital catarinense.
A Folha acompanhou a visita de Marzollo até a casa de Juarez, no topo do morro.
Entre ida e volta são 354 degraus. O aposentado está só. Com dificuldade, abre o cadeado da porta, mantida fechada porque a pouca comida costuma ser furtada.
O médico mede a pressão e dosa a glicemia com uma picada no dedo. Está em 380 mg/dl—deveria estar abaixo de 100 mg/dl. “Me mostra como está tomando a medicação, seu Juarez.”
Tateando, o paciente busca a caixa de remédio: “Tomo dois pequenininhos de manhã, um grandão depois do almoço, outro depois do jantar”, relata. “Agora o senhor vai tomar dois pequenininhos também depois do jantar pra controlar a diabetes, tá bem?”, diz Marzollo.
Na geladeira, só água e refresco. “Como o senhor está fazendo para comer?” “Minha nora traz almoço e jantar. Se ela esquece, como bolacha com leite mesmo.”
Primeira capital a ter 100% da população coberta pelo ESF, a atenção básica de Floripa tem se mantido forte mesmo com gestões de diferentes partidos e corte de orçamento. A saúde municipal tem 17% do orçamento do município, que é de R$ 1,1 bilhão por ano.
“A atenção primária, com uma gestão técnica que se apoia nas melhores evidências, gera economia de saúde que torna viável o sistema”, diz Silveira, que também é médico de família concursado.
O município investe na qualificação dos profissionais. Tem programas próprios de residência médica e enfermagem em medicina de família.
Por meio de parceira com o BMJ (British Medical Journal), as equipes têm acesso às informações sobre a melhor conduta clínica.
A criação de protocolos que dão mais autonomia à enfermagem é mais um diferencial. Nos centros de saúde, enfermeiras revezam com médicos nos cuidados de rotina de doentes crônicos, gestantes e bebês. Podem pedir exame de gravidez, de colo uterino, inserir DIU, renovar receitas, prescrever penicilina.
Segundo Elizimara Ferreira Siqueira, responsável pela enfermagem da rede e conselheira do Coren (Conselho Regional de Enfermagem) de Santa Catarina, “não há outro lugar no país em que a enfermagem esteja tão alinhada com a medicina. Trabalhamos ombro a ombro, sem competição”.
Enfermeiros de 15 municípios catarinenses estão sendo capacitados para replicar a experiência pelo Estado.
Se a atenção primária está bem equacionada, a média e alta complexidade enfrenta em Florianópolis os mesmos desafios do resto do Brasil.
A capital não tem hospitais próprios, depende da sobrecarregada rede estadual, disputada por mais 294 cidades.
Para tentar reduzir filas de espera, a secretaria da saúde criou o que chama de apoio matricial. Por email, o médico de família relata casos complicados e especialistas o orientam na condução.
Ainda assim, são muitos os pacientes que aguardam consultas e internações eletivas.
A fila da oftalmologia é recordista: 18.895 pessoas e 1.634 dias de espera.
Segundo Edenice Reis da Silveira, diretora de inteligência à saúde de Florianópolis, o município investe na criação de policlínicas de especialidades e em serviços terceirizados, mas se ressente de verbas estaduais historicamente defasadas. “Os serviços credenciados dão sustentação ao modelo de saúde da família, a nossa prioridade. Não posso pensar em tomografia sem ter exames básicos, eletrocardiograma e ultrassonografia para dar suporte aos médicos de família”, explica.
Fonte: Folha de S.Paulo
Foto: Lalo de Almeida/Folhapress