Esta história era frequente no passado: o médico foi pediatra do pai e, uma geração depois, passou a atender o filho, quase como uma tradição familiar baseada na confiança profissional e na afinidade amadurecida pelo relacionamento dentro do consultório. Mas hoje a realidade é outra. Cada vez menos estudantes de medicina seguem a especialidade, ao mesmo tempo em que os que já estão na área buscam sair dos plantões. Este cenário, comum a maior parte das cidades brasileiras, conforme especialistas, explica a carência na oferta de atendimento em Blumenau, seja na rede particular ou na pública.
– A falta de pediatras é generalizada, todos os estados têm essa deficiência e é algo que piora todos os anos. Primeiro vem de uma falta de valorização de carreira, remuneração inferior a outras áreas (especialidades médicas) e um trabalho muito mais desgastante. Um pediatra precisa de mais dedicação, atenção com o paciente, conversa com os pais. Enquanto outros médicos atendem um paciente por consulta, o pediatra atende pelo menos três (referindo-se também aos pais) – analisa o coordenador do curso de Medicina da Furb e pediatra há 38 anos, Hamilton Rosendo Fogaça.
Segundo o Conselho Regional de Medicina (CRM) de Santa Catarina, atualmente Blumenau tem 93 pediatras ativos em um universo de 1.134 médicos. Proporcionalmente, o dado equivale a um profissional para cada 3,7 mil habitantes da cidade. Enquanto os profissionais mais antigos vão largando o jaleco, Fogaça estima que no meio acadêmico cerca de 10% dos formandos escolhem a pediatria. Isso quer dizer que a cada 70 novos médicos formados por ano pela Furb, apenas sete buscam a especialização para tratar crianças e adolescentes, que em algumas instituições de ensino pode durar até três anos.
Estudantes que desejam tornar-se pediatras são movidos pela paixão
Dentro da estatística, quem sonha em fazer carreira atendendo crianças é movido pela paixão. Aos 23 anos e iniciando o último ano da faculdade de Medicina, a blumenauense Aline Scheidemantel sempre teve interesse pela pediatria e facilidade com as crianças, mas durante as aulas na universidade decidiu o rumo que iria tomar. Incentivada pelo próprio professor Hamilton Fogaça, que duas décadas atrás foi o pediatra dela, Aline fortaleceu o interesse pela carreira.
– A gente sabe que a remuneração é inferior a outras especialidades, as cargas horárias são exaustivas, além de exigir mais sensibilidade em consultas mais longas em que é fundamental orientar os pais de forma minuciosa e cautelosa. Quem escolhe a área da pediatria é realmente por amor, por essa vontade de seguir o crescimento das crianças – conta a jovem.
Mais do que a falta de especialistas para atendimento de rotina, a carência destes profissionais é mais acentuada nas funções que exigem a realização de plantões. Conforme o médico Hamilton Fogaça, há uma demanda muito grande por pediatras nos prontos-socorros, que cumprem rotinas de até 40 consultas por noite, algo que, segundo ele, não é recompensada com pagamentos e valorização respectiva com a carga de trabalho.
– Há uma mudança de geração também, de novos profissionais que não querem abrir mão do bem-estar e só trabalhar. Para abrir mão do lazer tem que ser muito bem remunerado, mas como isso não acontece ele acaba indo para outra especialidade – avalia o pediatra.
Na reta final da faculdade, Aline é uma exceção entre seus colegas de classe quando diz que depois de formada quer trabalhar tanto na rede pública quanto na privada, inclusive com os plantões que fazem parte da carreira. A jovem conta que espera se sentir realizada na profissão e ter o reconhecimento dos pacientes, mas demonstra receio com o futuro da atividade:
– É um momento triste que gera insegurança para mim e meus colegas. Preocupa, mas temos expectativa de que vai melhorar, que a profissão de pediatra vai ser mais valorizada, acho que é algo que está mudando já – projeta.
Pronto atendimento fechou por falta de profissionais
Depois de 23 anos de atendimento, o Centro de Pediatria Vale do Itajaí (Celp) fechou as portas do pronto atendimento no dia 31 de dezembro de 2017. O motivo foi a falta de pediatras. O número de profissionais não completava os horários da escala de plantão, conforme explica a gerente administrativa, Inge Mueller:
– Chegamos ao fim do ano querendo fazer um planejamento para 2018 e não conseguimos. Então, percebemos que não íamos fechar a escala de plantão com os médicos que tínhamos. O Celp quer prestar um serviço de qualidade, não adianta você buscar fazer um serviço e não ter qualidade, e por isso optamos por encerrar o atendimento.
Os profissionais foram realocados no Celpinho, na Rua Engenheiro Paul Werner, mas ao contrário do que acontecia, os 11 pediatras agora atendem apenas casos ambulatoriais e com hora marcada – como crianças com febre ou mal-estar repentino, por exemplo.
Os pais de Arthur Horongoso, de 10 meses, contam que sempre recorrem ao atendimento no Celpinho e quando precisam recorrer à emergência vão até o plantão do Hospital da Unimed, na Vila Nova. Em outros momentos marcam horário com o pediatra que acompanha o crescimento do filho.
– Marcamos horário ou acionamos o pediatra dele aqui no Celpinho. Apenas uma vez precisamos levar o Arthur para uma consulta de emergência – comenta Katlyn Griebner ao lado do marido.
Sem plantão, atendimento e só com horário marcado
A recomendação do centro de pediatria em casos de urgência e emergência é procurar o Hospital Santo Antônio, que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e o Hospital da Unimed, para quem tem convênio.
– Até uns 10 anos nós éramos 24 horas e depois passamos fechar aos domingos e feriados e a atender das 7h30min até as 22h no pronto atendimento do Celp. E isso foi sempre por falta de pediatra. Sem ter alguém para cobrir a noite e ficar (de plantão) nos domingos e feriados, o horário foi reduzindo – relembra Inge, ao citar que as consultas continuam sendo ofertadas no Celp, no Garcia, mas só com hora marcada.
“Valorizar o pediatra é valorizar a criança e o futuro”
Giovanni Ramos Nercolini, 57 anos, é um dos profissionais que atua em Blumenau. Ele é o médico que aparece na foto da capa, exerce a função há 32 anos na cidade e considera que a situação se dá pela pouca valorização do pediatra.
– Não é exclusivo da cidade ou da região. A Sociedade Brasileira de Pediatria briga por isso (pela valorização). Valorizar o pediatra é valorizar a criança para ter um futuro saudável. Dizem que a prevenção é o melhor tratamento. Então, o pediatra faz esse trabalho – pondera Nercolini.
Sobram vagas na rede municipal de saúde
Hoje 20 profissionais pediatras trabalham na rede municipal de saúde de Blumenau. Distribuídos nos sete Ambulatórios Gerais (AG) – localizados na Velha Central, Escola Agrícola, Badenfurt, Progresso, Itoupava Central, Fortaleza e Ponta Aguda – eles atendem nos turnos matutino e vespertino, conforme contrato de trabalho. Outros 11 profissionais, que estavam na Policlínica e estão realocados, atendem apenas subespecialidades dentro da pediatria, também com hora marcada. Os atendimentos de urgência e emergência são direcionados ao Hospital Santo Antônio, referencia do SUS no Vale.
– Nós gostaríamos de ter mais pediatras na nossa rede municipal. Temos concursos e contratações abertas justamente para essa formação. Existe, sim, uma carência porque não tem procura pela área. É uma especialidade de pouca procura em residência médica, isso já alguns anos – ressalta o diretor-executivo da Secretaria de Promoção de Saúde, o médico Marcus Vinícius Campos Rosa.
Ele observa que cada vez menos os colegas se especializam em pediatria. O motivo apontado é que os recém-formado acabam se direcionando para outra especialidade como cardiologia e ortopedia, atualmente as mais procuradas, segundo Marcus. Dos aproximadamente 170 médicos que atendem na rede municipal de Blumenau, os especialistas na saúde de crianças e adolescentes representam pouco mais de 10%.
– Há alguns anos já vem com esse déficit. Hoje temos concurso e contratação em aberto e não temos interessados. Esta é uma particularidade da especialidade. É impressionante, ano passado tivemos seleção na rede municipal, mas não houve procura – pontua o diretor.
Segundo o último edital de concurso para a área, que não teve profissionais interessados, o salário-base para um pediatra na rede pública com carga horária de 20 horas é de R$ 2.415,28.
Fonte: Diário Catarinense
Foto: Patrick Rodrigues / Jornal de Santa Catarina