Um colapso em todos os setores. A rede pública de saúde de Campinas (SP) viveu um dos piores anos de sua história. Durante 2017, o município teve falta de leitos, remédios, filas para atendimento, reclamações de usuários, além de ausência de investimento, denúncias e greve de funcionários e médicos no Hospital Ouro Verde. Em agosto, uma série da EPTV, afiliada da TV Globo, mostrou a grave crise do setor na cidade.
Para tentar entender melhor o que aconteceu na saúde de Campinas em 2017, o G1 entrevistou o secretário de Saúde, Cármino de Souza, e o conselheiro do Cremesp Luiz Antônio da Costa Sardinha.
Nota da redação: As entrevistas com o secretário de Saúde e o conselheiro do Cremesp foram realizadas nos dias 24 e 21 de novembro, respectivamente. No entanto, no dia 30 de novembro, o Ministério Público deflagrou uma operação para investigar a Organização Social Vitale Saúde, que administrava o Hospital Ouro Verde. A Promotoria apura desvios de R$ 4,5 milhões na unidade e seis empresários ligados a empresa foram presos.
Três funcionários da Prefeitura foram exonerados por suposto envolvimento no esquema – na casa de um deles, foi encontrado R$ 1,2 milhão em dinheiro. O prefeito Jonas Donizette (PSB), o secretário de Assuntos Jurídicos Sílvio Bernardin e o líder de governo na Câmara de Vereadores, Marcos Bernardelli (PSDB), são investigados por terem o nome citado em conversas interceptadas pelo Ministério Público.
Ao G1, depois que a operação foi deflagrada, o secretário de Saúde, Cármino de Souza, afirmou que a gestão do Ouro Verde passaria a ser municipalizada e o contrato com a Vitale foi encerrado. De acordo com o titular da pasta, a Prefeitura estuda como incorporar gastos com 1,6 mil funcionários sem ultrapassar o limite imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – uso de até 60% da receita corrente líquida com pessoal
“O que hoje a gente está trazendo para a gestão municipal é o funcionamento, de que maneira vai funcionar, como vai ser o relacionamento entre as unidades. Por isso que a gente fala em municipalização da gestão. […] A gestão estava inteiramente com um terceiro. Agora é o município que vai fazer a gestão de modo operacional do hospital. É uma diferença expressiva. […] A gente vai entrar de maneira direta e objetiva dentro da gestão”, explica o secretário.
A Vitale Saúde informou que o relatório do MP não comprova uso de dinheiro pública porque a entidade tinha receita de outras fontes. Além disso, a empresa disse que não foi criada para desviar dinheiro, uma vez que trata-se de entidade sem fins lucrativos e que não tem donos.
Confira a seguir as entrevistas:
Cármino de Souza
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G1: Campinas teve um ano com greve de médicos, problemas de falta de leitos, filas para atendimento, falta de remédios e equipamentos básicos, suspensão de exames. A Saúde pública do município passou por um dos anos mais graves de sua história em 2017? O que fazer para sair desse caos?
Cármino de Souza: Sem dúvida nenhuma 2017 foi o ano mais difícil. Foi difícil para todos os municípios, para os estados, governo federal finalizando com um déficit histórico. Então acho que 2017 é um ano para ser esquecido. Eu acho que a saúde não é uma ilha, ela sofre todas as influências, todas as dificuldades. Campinas, no início do ano, tinha projetado um déficit enorme. Felizmente, conseguimos terminar com 1/4 do déficit que havia sido projeto no início do ano. É claro que isso não é feito sem sacrifício. A gente teve que promover uma série de ajustes orçamentários, financeiros, contratuais, então praticamente não teve um parceiro dessa secretaria que não tivesse sido contatado para que a gente pudesse estabelecer uma relação que pudesse fazer com que a gente vencesse o ano sem promover calote. Nunca fizemos isso. Agora, é minha obrigação tentar baratear preço de remédio, é minha obrigação tentar segurar o número de exames daquilo que não é possível ser feito. Saber aquilo que tem que ser transferido para o terceiro setor e aquilo que deve ficar no serviço público. Enfim, eu acho que isso é uma obrigação. Eu costumo dizer que é muito difícil cortar dinheiro na saúde.
Na saúde, você consegue fazer transposição de dinheiro, mas não consegue cortar, porque a demanda é sempre maior do que a demanda do ano interior e a gente viveu dramaticamente esse crescimento entre 2015 e 2016 e mais dramaticamente ainda entre 2016 e 2017, quando o número de exames cresceu de maneira muito grande, o número de atendimentos cresceu, foi matéria, vocês falaram disso. Em agosto,a gente tinha superado o número de atendimentos de 2016 e tivemos que promover alguns ajustes de alguns convênios importantes, como o da PUC, Cândido Ferreira, ajustes com a Maternidade. A gente só não mexeu naqueles convênios pequenos porque isso representaria muito pouco e existe uma singularidade muito grande desses convênios para que você possa ter alguma margem significativa. Agora, eu também tenho a minha convicção de que não causamos nenhum tipo de desassistência, no sentido de fechar porta, fechar hospital, isso não aconteceu. A gente continuou funcionando. As notícias que a gente vê do país inteiro são notícias muito piores do que a que a gente vê na cidade de Campinas. Agora, não foi um ano fácil.
G1: O Hospital Ouro Verde é um dos principais hospitais públicos da cidade e, durante o ano, os problemas de falta de estrutura prejudicaram os pacientes e também os funcionários, tanto que médicos e funcionários fizeram greve. Faltam remédios e equipamentos. O que fazer pra resolver a situação do Hospital Ouro Verde?
Cármino de Sousa: Em relação à questão do Ouro Verde, é uma questão complexa, nós ainda não temos a solução definitiva. Eu acho que existe um problema ligado à sub-rogação, que é a passagem de uma entidade para outra, onde o passivo ficou e a Vitale entrou, mas acho que existe problema de gestão deles que eles mesmo reconheceram, como por exemplo ter trocado todo o corpo diretivo. Não conseguimos fechar a questão ainda sobre o que fazer em relação ao passivo. O que nós queremos é dar tranquilidade ao hospital. O problema existe, não estamos fingindo que ele não existe, mas o que nós queremos é que o hospital volte a funcionar, volte a produzir. Não dá pra fechar ambulatório, não dá pra jogar consulta para maio, isso não dá, nós não vamos aceitar.
A greve dos funcionários foi feita em um cenário interessante. Não havia atraso salarial. Os médicos de CLT também não tinham atraso salarial. O que tinha atraso salarial eram os PJs, os médicos que trabalham como empresa. E aí, é estranho que o sindicato dos médicos se envolva porque essa é uma relação entre empresas. O sindicato não representa empresas. Mas, agora, nós estamos trabalhando para que exista fluxo de caixa, para que os funcionários recebam o 13º salário, que os médicos tenham seus proventos. Não tem um dia aqui na Prefeitura que a gente não converse sobre isso.
Nós contratamos a Vitale para fazer a gestão do hospital, nós não contratamos a Vitale para ter problema. Parte dos problemas talvez foram gerados por nós. Ok, nunca negamos isso, mas acho que não precisava ter tido tanta confusão pelo tamanho do contrato. E olha que estamos falando de um contrato de mais de meio bilhão. Então, eu acho muita confusão, tanto que a própria entidade entendeu isso.
G1: O senhor adiantou que a gestão do Hospital Ouro Verde vai mudar. Como isso vai funcionar?
Cármino de Souza: O que tá sendo estudado? Criar o que nós estamos chamando de rede Mário Gatti, porque seria uma evolução da autarquia, para cuidar dos dois hospitais e cuidar da rede de urgência e emergência. É um projeto de lei em que a autarquia vai ter o seu corpo funcional, seu orçamento, e nós disponibilizaríamos os funcionários que já são da Prefeitura
Vamos vincular a autarquia Mário Gatti ao secretário de Saúde, porque atualmente a autarquia Mário Gatti é vinculada ao prefeito, e passaria a ter uma função muito mais importante em relação à integração dos serviços hospitalares e de urgência e emergência. Chegamos a conclusão que deveríamos aproveitar um instrumento autárquico que já existe e não se completou de maneira definitiva, e completá-lo. Mas não só completá-lo. Aproveitar para fazer toda a integração da rede de urgência e emergência.
Hoje, nós temos sete grupos de plantão trabalhando 24h por dia. A autarquia vai cuidar disso, se tiver faltando um médico no Anchieta e tiver um sobrando no Campo Grande, ela fará esse remanejamento. No final, eu seria o responsável e o responsabilizado por tudo, e o Marcos Pimenta, presidente do Mário Gatti, seria um superintendente de toda a rede.
Cada unidade de urgência e emergência também vai ter um gestor. E vai ter também um gestor no Ouro Verde. Hoje, nós acompanhando o produto que é feito no Ouro Verde. Nós acompanhamos, por exemplo, todas as notas fiscais de consultas e cirurgias, mas nós não controlamos os processos do hospital. Então esse gestor passaria a trabalhar em conjunto com a organização para acompanhar todos os processos. Como que são as contratações, as compras, o armazenamento.
A ideia é criar uma superestrutura autárquica no sentido de que essa estrutura cuide dos dois hospitais e faça a complementariedade. O Mário Gatti tem um perfil muito de trauma e câncer. Já o Ouro Verde tem mais URVA (Unidade Referenciada para Acidentes Vasculares). Se não houver vaga em uma UTI no Mário Gatti, o médico vai operar no Ouro Verde, que é a nossa maior UTI, tem 60 leitos. A ideia é fazer essa complementariedade, que a residência médica seja única, que os médicos operem nos dois lugares, que os ambulatórios sejam complementares. A ideia é aglutinar todo o corpo funcional, seja de médico, enfermeiro, administrativo, enfim, dentro da autarquia.
A gente está imaginando que o ano de 2018 será o ano da implantação e em 2019 esse modelo esteja efetivamente funcionando. Isso será implantado dentro do orçamento que já existe. Temos um compromisso de não aumentar os gastos na saúde nesse processo. A criação de pouquíssimos cargos é necessária para criar a estrutura, mas isso tem que ser retirado da economia de outras coisas, porque não é a nossa ideia criar cargos. Queremos utilizar as pessoas que já estão trabalhando.
G1: Uma das críticas feitas pelo Cremesp à gestão da saúde em Campinas é que o atendimento do SUS para a municipalidade é apenas no Mário Gatti e no Ouro Verde. Segundo o órgão, a cidade deveria ter pelo menos mais um hospital. A gestão de vocês tem mais três anos pela frente. Existe a possibilidade de Campinas ganhar mais algum hospital nos próximos anos?
Cármino de Souza: Nenhuma possibilidade. O município de Campinas não tem capacidade econômica de ter mais um hospital. Hospital é uma atividade fundamentalmente de governo do estado. Se você comparar Campinas com São Paulo, nós temos o dobro de leitos hospitalares que o município de São Paulo. Eu estou dizendo proporcionalmente. Se a gente encarar Campinas como 1/10 de São Paulo, hoje São Paulo tem 10 ou 11 hospitas municipais, Campinas tem dois. Então, o problema não é nem fazer o hospiral, o problema é que você gasta US$ 100 milhões para fazer um hospital e mais US$ 10 milhões para manter um hospital. Entre o Mário Gatti e o Ouro Verde, a gente gasta mais de 1/3 do orçamento da saúde mantendo dois hospitais. Temos que lembrar também que mais da metade do orçamento da saúde é folha de pessoal. Hoje nós temos um gasto de folha de quase metade do orçamento, e o gasto com os dois hospitais que é mais de 1/3, então não existe fôlego para ter outro hospital. Eu sempre digo: a Região Metropolitana de Campinas deveria ter três hospitais monotemáticos: um pra câncer, um para trauma e um de cardiologia, no mínimo. Mas é muito difícil que isso fique gestão municipal, ao menos que tivesse um impacto federativo diferente, onde a gente ficasse com um volume maior de recursos.
Nessa forma que o SUS opera hoje não há a menor possibilidade, porque são 13 anos de tabelas congeladas. É uma inversão de aplicação, o que era 70% federal hoje é 30%, não tem como. A cidade não é só saúde, a cultura precisa de coisas, a assistência social precisa de coisas, a educação precisa de coisas. Que a região precisa de mais hospital, precisa, tanto na rede pública como na rede privada. A Unimed inaugurou um hospital, é pequeno para os portes da Unimed, mas tem o projeto do Hospital Vera Cruz, também o Hospital São Luís, então tem projetos de criar mais hospitais na rede privada. Campinas é um polo de atenção da área de saúde, é claro que tem demanda, mas o município não tem como. O que estamos tentando fazer é aumentar a rede de atenção primária, consolidar a rede de urgência e emergência, nós estamos licitando o pronto-socorro metropolitano, vamos abrir o PS do Carlos Lourenço já na lógica da rede. Vamos ter o AME, a Policlínica, que vai para um prédio recém-liberado pelo governo federal. A gente tem que tentar fazer com que a rede de atenção primária minimize a utilização do hospital.
G1: Durante o ano, também houve muitos problemas de falta de leitos em unidades de Campinas, como Mário Gatti, HC da Unicamp, inclusive o próprio Celso Pierro. Como está a situação? Qual é o déficit e existe a previsão de expandir?
Cármino de Souza: A gestão municipal de Campinas tem um número muito grande de leitos. Nós, hoje, fazemos a gestão de mais de 1 mil leitos. Agora, crescer leitos, nós não temos para onde crescer, porque nós ocupamos os leitos possíveis da Santa Casa, incluindo a abertura na unidade de queimaduras, que é uma das coisas mais acertadas que a gente fez, porque ela vive lotada. Nós ampliamos os leitos da Beneficiência Portuguesa até o limite, porque são hospitais pequenos. A Casa de Saúde não quis se manter conosco, então perdemos 28 leitos da Casa de Saúde, mas aumentamos 5 leitos na Maternidade, aumentamos leitos de UTI Neonatal nesse novo convênio, mantivemos os da PUC, enfim, nós não temos o que comprar de leitos. O Ouro Verde está plenamente ocupado com 250 leitos, o Mário Gatti também está plenamente ocupado com 200 leitos. Então, nós temos, da rede municipal, 450 leitos. Aí nós temos contratados a Maternidade, a Beneficiência, a PUC, a Santa Casa como parceiros, que têm leitos hospitalares. E aí, dentro da rede pública o que sobra é a Unicamp, que eu imagino que tem em torno de 650 leitos.
G1: Campinas já teve duas epidemias de dengue, também houve ano com muitos casos de zika e este ano o retorno da febre amarela. Porque a cidade sempre sofre com problemas de doença de verão? Em 2018, existe chance de o município passar por mais uma epidemia?
Cármino de Souza: A grande vantagem da febre amarela é que ela tem vacina. Então, as áreas de risco têm que ser vacinadas. Eu não tenho um número preciso porque infelizmente não se registrou adequadamente na cidade do ano 2000 pra cá quantas pessoas foram vacinadas. Esse ano nós vacinamos 400 mil pessoas. A gente imagina que no ano 2000 tenha sido vacinado meio milhão de pessoas. Claro que, desse meio milhão, alguns mudaram de cidade, alguns morreram, vieram novas pessoas. Então vamos imaginar que daquele montante metade ainda esteja por aqui. A gente imagina que Campinas tem na ordem de 600 ou 650 mil pessoas vacinadas. O que quer dizer que grande parte da população já está imunizada e isso é a melhor coisa para o ser humano. Nós não estamos esperando que exista uma evolução da febre amarela na nossa cidade. Nós estamos preocupados com a chikungunya, porque nós tivemos no Brasil milhares de casos de chikungunya no Norte e no Nordeste. E este ano tivemos os primeiros casos autóctones em Campinas. E ela preocupa porque se mostrou muito grave no Norte e no Nordeste.
A mortalidade no Ceará, por exemplo, foi muito alta. E ela é uma doença que tem uma infectividade maior do que a dengue e uma letalidade maior do que a dengue. Ela cronifica, então exige do sistema de saúde muito mais do que a dengue. A dengue é o vendaval. Ela vem, varre e vai embora. A chikungunya não é um vendaval. Ela vem e o doente fica. Em alguns casos exige até o uso de drogas biológicas. Ela é uma preocupação. Os nossos indicadores de 2017 indicam que o ano foi bom, mas as arboviroses têm o seu ciclo e a população não está coberta. O combate ao mosquito continua sendo o método mais eficiente, isso continua sendo fundamental, porque sem o mosquito não tem nada. Nós não estamos esperando uma epidemia, mas mesmo sem epidemia, a chikungunya é grave porque exige muito do sistema de saúde. A febre amarela continua sendo um cuidado, mas para quem tiver que vacinar, a vacina está disponível.
G1: Campinas vai ter um orçamento de 1,3 bilhão em 2018. Qual é a medida prioritária que o município deve fazer com esse dinheiro para resolver a grave crise que passou em 2017? Já que o ano teve tantos problemas, haverá mudança de estratégia?
Cármino de Souza: Olha, eu digo que o orçamento para nós é muito difícil ter margem de manobra. Orçamento é uma autorização de gastar, mas às vezes você não gasta tanto e às vezes suplementa, agora nós estamos suplementando. A coisa mais importante para um governante é olhar para o ano anterior e ver o quanto foi liquidado e o que liquidou, porque aquele é o orçamento real. O orçamento é importante porque ele é uma peça dinâmica. A Câmara diz o quanto a gente pode gastar, mas não quer dizer que você vai gastar esse limite. Ou então você pode gastar até mais. No ano da grande epidemia, por exemplo, nós gastamos muito. O orçamento é uma peça dinâmica, mas ao mesmo tempo é engessada, porque você tem folha, parceiros, contratos, compra de remédios, manutenção. Não sobra quase nada para investimento. O investimento orçamentário é em torno de 1,5%. Esse valor do investimento é tudo proveniente de parcerias. Para 2018, o nosso grande projeto vai ser o Saúde em Ação.
Luiz Antônio da Costa Sardinha
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G1: Greves de médicos, problemas de falta de leitos, filas para atendimento, falta de remédios e equipamentos básicos, suspensão de exames. A Saúde pública em Campinas passou pelo ano mais grave de sua história em 2017?
Luiz Antônio da Costa Sardinha: O problema se agravou em setembro do ano passado, que a gente passou a ter uma mudança na administração da cidade, principalmente em uma área da cidade, que é o Ouro Verde. Acho que é importante a gente esclarecer que é o momento de uma crise importante no país, em que a região perde praticamente 100 mil clientes de planos de saúde suplementar, que migram para o SUS automaticamente. Essa migração cria, junto com ela, epidemias de dengue, zika, no mesmo momento, em um SUS que já é subfinanciado, que já não tem um acerto econômico bem feito, então você imagina o que acontece. Era certo de que iria acontecer uma situação de explosão grande, de uso contínuo e de pouco investimento.
Acho que o problema da saúde em Campinas é o problema da saúde no país. É o subfinanciamento, a chegada de novas medidas, novas propostas de tratamento, que você não tem financiamento para isso. E é um colapso que vem se estabelecendo há muito tempo. O Cremesp não avalia isso como um fator único, mas isso prova algumas coisas. Primeiro, aquela história de que o Mais Médicos resolveria o problema do país. A falácia demorou pouco para se tornar não real. A gente até achou que foi muito rápido. E a gente sabe que não vai resolver. O modelo de gestão que teve em Campinas, acho que foi um modelo equivocado no Hospital Ouro Verde, porque é um modelo que você passa a ter uma não responsabilização da empresa que atua. Ela vira e fala: a responsabilidade é da Prefeitura. O cidadão, não só de Campinas, mas o cidadão brasileiro está cansado dessa postura de que a responsabilidade é do outro.
G1: Qual seria um modelo ideal de gestão de saúde?
Sardinha: O novo modelo de gestão de saúde, não só de saúde, mas de qualquer sistema, tem que ter transparência, responsabilidade, e a melhor gestão possível para atingir um objetivo maior, que é a saúde do cidadão. Se você não tem medicação, tem que ter transparência de se explicar porque não está tendo medicação e se assumir o porque. E aí entra um fator que eu acho que é importante, que é o Conselho Municipal de Saúde. É o gestor da saúde como um todo. O que o Cremesp faz: o Cremesp atua em defesa da sociedade caracterizando que ela tenha condições de ter uma boa saúde e em defesa do médico para que ele tenha condições de exercer uma boa saúde. Como vou exercer uma boa saúde se eu não tenho exame? Se eu não tenho ninguém para dar plantão?
G1: O Hospital Ouro Verde é um dos principais hospitais públicos da cidade e, durante o ano, os problemas de falta de estrutura prejudicaram os pacientes e também os funcionários, tanto que médicos e funcionários fizeram greve. Faltam remédios e equipamentos. O que fazer pra resolver a situação da unidade? O Cremesp defende a municipalidade?
Sardinha: O primeiro movimento de greve no Hospital Ouro Verde nesse ano não foi de médico, foi de funcionário administrativo. Quando o administrativo para, é que ele vê que o mínimo de situações de trabalho para ele não está sendo garantido. Mesmo com a situação administrativa muito ruim, sem recolhimento de fundo de garantia, que são denúncias que precisam ser verificadas pelo Ministério Público, o médico continuou trabalhando, e aí depois não deu mais. O Cremesp defende que mesmo o modelo de co-gestão com uma organização social tem que ter modelos muito claros de controle e transparência. Você tem que ter um conselho local de saúde lá dentro publicando a cada dois meses tudo o que está ocorrendo lá dentro. Você tem que ter o Ministério Público lá dentro com transparência dos diversos atores envolvidos.
Por exemplo: é muito claro que você cria uma organização social para que você contrate pessoas para trabalhar para você. E esse contrato é por CLT. E não é isso que a gente viu na instituição [Vitale]. A instituição mandou embora em agosto nove anestesistas e sete ortopedistas e contratou uma empresa para prestar esse serviço. Isso é considerado equivocado e até um pouco ilegal, porque você terceiriza para a Organização Social e ela quarteiriza para outra empresa. E esse tipo de modelo cria uma instabilidade muito grande e não fixa ninguém para trabalhar. As pessoas trabalham um tempo e vão embora. O médico chega para trabalhar, a empresa dele não existe. São três fatores: transparência, controle rígido e responsabilização dos atores envolvidos. No caso do Ouro Verde, para chegar nessa situação que chegou, algum desses fatores não foi feito de maneira correta.
Nota da redação: O G1 contatou o conselheiro do Cremesp, Luiz Antônio da Costa Sardinha, depois da entrevista, para comentar a operação do Ministério Público que apura o suposto desvio de R$ 4,5 milhões no Hospital Ouro Verde. Confira a resposta: O que aconteceu no Ouro Verde foi a somatória de uma empresa profissional em desviar recursos da saúde e uma ineficiência da prefeitura em fiscaliza-lá. O cidadão sofre.
G1: Durante o ano, também houve muitos problemas de falta de leitos em unidades de Campinas, como Mário Gatti, HC da Unicamp, inclusive o próprio Celso Pierro. Qual é o número ideal de leitos que Campinas deveria ter atualmente, de acordo com a avaliação do Cremesp?
Sardinha: Mudou muito o conceito de hospital com leitos reservados. A maioria das cirurgias hoje é mais rápida, o diagnóstico é mais rápido. Só que precisamos ter leitos que a gente chama de retaguarda. Então você pode ter unidades de pronto-atendimento, desde que essas unidades tenham uma retaguarda muito bem estabelecida na cidade. Você tem uma região metropolitana que usa Campinas. Mas o que você acrescentou de leitos em Campinas nos últimos dez anos? O Hospital Ouro Verde. Nós temos o mesmo suporte de camas que tínhamos há anos atrás, mesmo que a secretaria de Saúde tenha comprado leitos de hospitais privados ou filantrópicos que dão um suporte. Mas você tem algumas situações muito interessantes na cidade que a gente pode discutir: A cidade ganhou uma faculdade de medicina, que vai usar os leitos que já existem.
Eu acho que a comunidade tem que chegar na faculdade de medicina, que é privada, e propor para ela: abra um hospital secundário de 80 leitos. Seu aluno vai ter um lugar para aprender, a cidade vai atender você e vai ser um donativo que a instituição privada faz em prol da unidade, essa é uma demanda que deveria ser dada. Já que é uma faculdade privada e que tem uma característica de saúde, que ela monte uma estrutura de camas para o município também.
O que nos últimos dez anos a cidade ganhou? Um hospital. A cidade precisa ser pensada em diferentes pontos. Você abre no Ouro Verde, que eu acho que precisava de uma UTI grande, mas você tem outros movimentos na cidade que também precisam de outros hospitais públicos. A divisa com Matão precisa, a divisa com Valinhos precisa.
G1: Campinas então necessita de mais hospitais que ofereçam atendimento de SUS para os moradores?
Sardinha: Se o ideal é você ter um leito para cada 1 mil habitante, faça as contas. Você tem 500 leitos e 3 milhões de habitantes. O déficit vai acontecer. Não tem como. Você precisa organizar para os próximos dez anos, a gente não faz gestão para 4 anos.
G1: Campinas já teve duas epidemias de dengue, também houve ano com muitos casos de zika e este ano o retorno da febre amarela. Por que a cidade sempre sofre com problemas de doença de verão? Em 2018, existe chance do município passar por mais uma epidemia?
Sardinha: A gente vê duas situações. Primeiro que é a caracterização de uma patologia em que é necessário e urgente um modelo de urbanização moderno, em que você dê condições de lixo e de saúde pública básica. O segundo ponto é a participação da sociedade como um fator de responsabilidade também. Agora, o que ocorreu é dengue, zika, febre amarela, e vai vir outro ai agora. A responsabilidade do município é muito grande. O município não pode parar de ter gestão de dengue.
O município tem que ter uma identidade sanitária porque saúde pública é contínuo. O que a gente antevê? Com a chegada do Verão, essa febre amarela vai vir muito maior do que a gente imagina. E como é que vai tratar? Tem que entrar nas casas, nos terrenos baldios, tem que responsabilizar os investidores dos terrenos que compram dentro da especulação imobiliária. Tem que ter punição financeira dentro do IPTU. Ou seja, tem que ter responsabilização do morador e também do serviço público.
G1: Campinas vai ter um orçamento de 1,3 bilhão em 2018. Qual é a medida prioritária que o município deve fazer com esse dinheiro para resolver a grave crise que passou em 2017? Qual é a saída para se livrar desse colapso?
Sardinha: Muito difícil responder uma pergunta dessa. O que a gente sabe da secretaria de Saúde é que eles têm planos de investimento que eu não tenho conhecimento. Você tem que imaginar que se você tem R$ 1 milhão, é um milhão por habitante. Quando você me fala que o orçamento é de R$ 1,2 bilhão, tudo bem, eu tenho 1,2 milhão de habitante. E aí? Como que eu vou fazer essa conta. São R$ 10 por habitante, é pouco. O que a gente tem que fazer com isso? A gestão tem que ser mais transparente, inclusiva e com envolvimento da sociedade. E a gestão tem que ter regras duras daquilo que ela faz. Eu já não vejo como ruim o fato de não ter diminuído o orçamento para o ano que vem, mas mais do que nunca é necessário a sabedoria, conhecimento, compartilhamento de decisões e transparência. Isso é fundamental.
Fonte: G1
Foto: Márcio Silveira/EPTV