Erro médico, prescrição de medicamento não aprovado, assédio sexual e abandono de paciente. Essas são algumas denúncias feitas contra médicos que atuam em Santa Catarina e que foram julgadas no Conselho Federal de Medicina (CFM) entre 2010 e abril deste ano. Dos 211 processos que passaram por todas as instâncias administrativas da área médica e envolviam profissionais do Estado, apenas 1,9% terminaram em cassação do registro profissional, número abaixo inclusive do resto do país, cuja média é de 2,7%. Do total de queixas, 71% acabam em absolvição ou penas brandas e confidenciais, sem divulgação pública.
Neste intervalo de sete anos apenas quatro médicos catarinenses foram impedidos permanentemente de exercer o ofício em Santa Catarina. Os dados foram repassados pelo CFM, via Lei de Acesso à Informação. É o conselho federal que julga os recursos de processos encaminhados pelo Conselho Regional, além de todos os casos que envolvem cassação da carteira profissional. O corregedor-geral do CFM, José Fernando Vinagre, reforça que os julgamentos seguem todos os passos do Código de Processo Ético-Profissional.
Apesar de ser inferior a 2%, Vinagre considera o número de cassações alto, por serem ações definitivas. Ele explica que as punições permanentes estão relacionadas, principalmente, a casos de “desvio de caráter”:
— Os casos de estupro, abusos sexuais e pedofilia normalmente terminam na cassação do médico. Isso também ocorre com médicos que fazem aborto, nos casos que ferem a legislação. O critério tem que ser muito justo, porque nem fazendo curso de medicina de novo ele pode voltar a exercer o ofício — diz.
Dos quatro processos com médicos catarinenses que acabaram em cassação nos últimos sete anos, três foram por abuso sexual e um por erro médico em uma lipoaspiração. Mas o corregedor garante que as cassações por erros não são comuns.
— Sou obrigado a dar o melhor em termos de terapêutica, procedimentos, mas não posso garantir que aquilo vai funcionar, se não ninguém mais morria. Tem que ter essa correlação entre o ato do médico e o dano que foi causado ao paciente.
SC é o quarto Estado com maior número de processos julgados no CFM nos últimos sete anos. Se analisado o total de 14 mil médicos que atuam em SC, a cada 67 médicos há um processo julgado no conselho. E a cada 3,5 mil há um processo de cassação. Vinagre afirma que no país todo a tendência é de que aumente esse número de denúncias, impulsionadas pela credibilidade dos conselhos junto à sociedade e ao maior número de médicos formados – cerca de 30 mil por ano.
Penas mais brandas têm função pedagógica, diz especialista
O advogado Maurício Batalha Machado, presidente da Comissão de Saúde da Ordem de Advogados (OAB), defende que é difícil comprovar esses erros médicos porque precisam estar muito bem caracterizados. Ainda assim, negligência e imperícia respondem pela maior parte (32,7%) das causas dos processos contra os profissionais de Santa Catarina no CFM. Mas a maioria dos casos não leva a punições duras aos profissionais. Do total de processos de médicos catarinenses julgados pelo CFM, um a cada quatro (24%) terminou em absolvição para o profissional. Mesmo quando condenados, a maior parte das punições foi branda: advertência ou censura confidencial (37%) – quando a condenação consta apenas no prontuário do médico e não é divulgada publicamente.
O corregedor-geral do CFM diz que há função pedagógica nestas penas mais brandas, elas representam impactos para os médicos, principalmente os éticos:
— É muito pesado para o médico que cumpre suas funções bem. O processo pode ser muito custoso, porque pode se contratar um advogado e pode vir acompanhado de pedidos de indenização na área cível.
O advogado especialista em direito médico Marcos Vinicius Coltri já defendeu pelo menos 100 médicos em processos nos conselhos. Ele explica que em muitos casos a denúncia pode não corresponder a uma infração prevista no Código de Ética, então o Conselho não pode punir.
— No julgamento, se houver dúvida, o Conselho deve absolver o médico, pois não pode haver condenação ética quando há dúvida. Na dúvida, a decisão deve ser em favor do médico denunciado – acrescenta Coltri.
Machado pondera, no entanto, que, assim como os advogados não têm conhecimento técnico para clinicar, os médicos não têm para julgar processos. O que poderia levar a decisões equivocadas. Coltri, que atua em São Paulo, defende que muitos advogados também não conhecem a fundo o Código de Ética Médica e, do outro lado, alguns conselheiros não conduzem o julgamento da forma mais adequada, o que pode levar à anulação. Caso o paciente ou o médico se sintam injustiçados com o resultado, podem ingressar com ação judicial e buscar anular o processo ético.
Mas Machado acredita que na maioria dos casos o mais importante para o paciente seja o ressarcimento e a punição criminal, não as sanções administrativas.
— A suspensão ou a advertência acaba sendo um complemento da satisfação do direito que o paciente busca. A plenitude está na indenização financeira ou na condenação judicial, esse que é o maior objeto das demandas que a gente vê.
Maior parte das ações é contra setor administrativo
A administração do hospital é a principal área alvo dos processos, seguida de cirurgia plástica e ginecologia e obstetrícia. Essas especialidades têm o maior número de ações contra profissionais de Santa Catarina no Conselho Federal de Medicina (CFM). A administração está relacionada a problemas, por exemplo, de falta de materiais ou profissionais. Nestes casos, a denúncia recai sobre o diretor técnico da unidade.
A cirurgia plástica responde por um a cada 10 processos. O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica – Regional Santa Catarina (SBCP-SC), Iberê Pires Condeixa, diz que a maioria são reclamações relativas a procedimentos feitos por médicos que não são especialistas na área. Além disso, cita que o resultado da cirurgia plástica é subjetivo, o que também pode levar a denúncias dos pacientes. Sobre os processos relacionados à ginecologia e obstetrícia, o presidente da sociedade dessa especialidade em SC, Ricardo Maia Samways, afirma que esse é um cenário mundial e está relacionado principalmente a complicações no parto.
Processo leva anos para ser julgado
Um dos casos públicos mais recentes envolvendo processo contra médico em Santa Catarina foi do nutrólogo Omar César Ferreira de Castro. Em junho deste ano, a Justiça o condenou a 62 anos de prisão por sete estupros a pacientes, em Florianópolis. Ele foi preso em fevereiro do ano passado, acusado de ter cometido crime sexual contra pelo menos 14 pacientes. Um ano e oito meses depois, o Conselho Regional de Medicina de SC ainda não julgou o caso. Se a condenação for a cassação, punição esperada para estes crimes, ainda terá de passar pelo julgamento no CFM.
O corregedor-geral do CFM, José Fernando Vinagre, explica que em casos de crime sexual é dado prioridade no julgamento no conselho até porque o exercício da profissão oferece risco à sociedade. Sem comentar esse caso específico, por tramitar em segredo, o corregedor do CRM-SC, João Francisco Bernardes, defende que o órgão tem realizado os julgamentos em bom ritmo. Neste ano, por exemplo, teria praticamente zerado as denúncias de 2014 e agora analisa as dos últimos dois anos – as ações têm prazo de cinco anos para prescrever.
O Conselho recebe em torno de 200 denúncias por ano, mas, segundo o corregedor, “um número expressivo não se confirma e o médico não tem a responsabilidade dos fatos que lhe são imputados”.
— A gente acaba recebendo um grande número de denúncias que a culpa, digamos assim, advém das más condições de trabalho. E as pessoas, como não conhecem os administradores ou gestores, vêm se queixar contra a única pessoa que conhecem: o médico. São denúncias que não têm uma base que sustente uma condenação.
Desde 1970 até setembro deste ano foram 2,1 mil médicos julgados pelo Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina, quase metade (46,4%) foram absolvidos. Nestes 47 anos, foram apenas 20 cassações, o que representa 0,9% do total dos processos. Sendo que, depois de passar por todas as instâncias, apenas sete tiveram de fato o registro cassado. Para Bernardes, esse resultado de absolvições e cassações demonstram um cenário positivo do Estado:
— O baixo número de penalizações ou penas mais gravosas traduzem que temos uma medicina de qualidade e de pessoas bem preparadas.
PROCESSOS NO CRM-SC ENTRE 1970 E SETEMBRO DE 2017
Absolvidos – 989 46,4%
Condenados – 1.143 53,6%, sendo 20 cassados
25% dos processos, em média, acabam em recurso no CFM
200 denúncias em média por ano
Tempo de prescrição do processo: cinco anos
COMO FUNCIONA O PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE UM MÉDICO
Qualquer pessoa pode denunciar médicos no Conselho Regional de Medicina (CRM). Depois de protocolada a denúncia, ela é apurada. Toda denúncia é obrigada a ser apurada, independentemente do teor. Inicialmente é instaurada uma sindicância, quando são solicitados esclarecimentos ao médico, documentos, entre outros.
O corregedor do CRM nomeia um dos 42 conselheiros que fica responsável por fazer um relatório dessa sindicância, que será apreciada numa câmara de julgamento. Nesta etapa, se decide pelo arquivamento da denúncia ou se será transformada em processo ético-profissional.
Caso a denúncia seja convertida em processo, ela vai a julgamento. São cinco penas previstas em caso de condenação: advertência confidencial; censura confidencial (ambas constam apenas no prontuário do médico, sem acesso público); censura pública (publicação no Diário Oficial e em jornal que circula no local de atuação do profissional); suspensão por até 30 dias (do registro e depois pode voltar ao trabalho); e cassação (definitiva).
Se o médico acusado ou o denunciante não concordarem com o resultado, podem recorrer ao Conselho Federal de Medicina, que funciona apenas como um órgão recursal. Os casos de cassação precisam obrigatoriamente passar pelo CFM também.
Fonte: CFM
COMO FAZER UMA DENÚNCIA NO CRM-SC
Escreva um documento relatando os fatos ocorridos;
Inclua os nome(s) do médico(s) denunciado(s);
Inclua data e local do ocorrido;
Inclua sua identificação completa (nome completo, CPF, endereço e números de telefones – residencial, comercial e celular), bem como a assinatura no documento;
Caso tenha um paciente envolvido, incluir todas as informações.
Caso tenha provas, anexar.
Apresentar a denúncia assinada e documentada ao Conselho Regional de Medicina (pode ser na sede SC-401, Km 04 Florianópolis, em algumas das delegacias regionais ou pelos Correios).
Fonte: CRM-SC/ Diário Catarinense
Foto: André Ávila / Agencia RBS