No Brasil, o desenvolvimento do embrião no útero de uma terceira pessoa, que não o da mãe genética, depende da comprovação, por laudo médico, da impossibilidade da mulher de gerar o bebê em seu próprio útero, ou nos casos em que o órgão não existe – conforme regras estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). No entanto, as denúncias de casos de “barriga de aluguel” no país reacendem a necessidade de rever as diretrizes para essa prática.
Para Patrícia*, o processo deveria ser legalizado e acompanhado pela Justiça. “Muitas fazem sem saber quem ficará com esse bebê no final. Então, deveria ser legalizado e ter o acompanhamento de órgãos que garantam a integridade da criança, como o conselho tutelar”, opina.
Hoje, a comercialização do chamado “útero de substituição” é ilegal. A prática solidária é regulamentada pela resolução 2.121/2015 do CFM. E, para que não haja caráter comercial, só pode ser feita entre parentes de até quarto grau – ou seja, mãe, avó, irmãs, tias e primas. Os demais casos em que se deseja emprestar o útero para esse fim estão sujeitos a autorização prévia dos conselhos regionais de medicina em cada Estado.
A legislação brasileira também explicita que a fecundação será realizada pelo método in vitro antes de ser implantado no útero. Além disso, estabelece normas mais explicativas, como o consentimento informado de todos os envolvidos, os aspectos do ciclo gravídico-puerperal, os riscos, a impossibilidade de interrupção, a garantia do tratamento médico dada pelos pais genéticos e o compromisso de registro, entre outros. Os casais homossexuais também são beneficiados pela regra.
Suporte. A resolução do CFM também prevê que, antes de o procedimento acontecer, a mulher deve passar por uma avaliação psicológica. A psicóloga clínica Débora Galvani, que costuma trabalhar com casos de adoção, explica o que deve ser feito antes de iniciar a abordagem terapêutica. “É necessária a avaliação tanto da receptora quanto dos pais biológicos para ver se eles têm condições de lidar com essa situação”, diz.
Para a mulher cujo útero irá gerar a criança, a análise irá verificar “se ela tem condições emocionais para lidar com a perda em relação a separação do bebê, se ela entende que não tem direito nenhum sobre essa criança que vai nascer, e ainda se está ciente de todas as transformações que o corpo irá passar”, esclarece.
Já no caso dos pais receptores, segundo psicóloga, é importante avaliar se “eles estão conscientes das possibilidades de dar alguma coisa errada, ou seja, de a criança vir a ter algum problema, e que não há a opção de desistência”, reforça.
A preparação é feita também com a mãe biológica, pois ela pode se sentir em segundo plano na gestação e, posteriormente, com a criança ao longo da vida. Alguns especialistas vão além e aconselham o casal e a “barriga de aluguel” a buscarem também a ajuda médica e jurídica.
CFM. Na Resolução 2.121/2015, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida para mulheres acima de 50 anos.
Juristas discordam sobre casos
No âmbito do direito, a barriga de aluguel não é interpretada da mesma forma pelos juristas. Segundo o advogado criminalista Warley Belo, apesar de o CFM ter duas resoluções que tratam do tema, “o órgão não se opõe à comercialização do útero”. Enquanto alguns advogados interpretam como sendo crime por “coisificar a mulher” – e nesse caso, poderia ser aplicada a pena de três a oito anos de reclusão e multa, conforme o artigo 15 da lei 9.434 –, para ele, é possível também a barriga de aluguel ser analisada como uma prestação de serviço e, portanto, pode ser remunerada, mas precisa ser regulamentada”, diz.
Outros. A barriga de aluguel é proibida em países europeus como Itália, França e Alemanha. No Reino Unido e na Irlanda, a lei reconhece como mãe apenas a pessoa que dá à luz.
Turismo da medicina reprodutiva
Nos Estados Unidos, pagar uma mulher para gerar um bebê que não é dela tornou-se uma prática comum, vista com naturalidade. Com isso, muitos casais brasileiros acabam viajando para lá.
Os locais mais procurados por brasileiros são os Estados Unidos (casais homoafetivos), Ucrânia (casais heterossexuais) e Rússia (solteiros). A legislação, no entanto, varia de país para país. O procedimento só pode ser remunerado em alguns Estados americanos, como a Califórnia e a Flórida. Entre as americanas, o valor da barriga de aluguel é de US$ 25 mil.
Índia, Nepal e Tailândia também são outros países que oferecem o serviço. Desde 2002, quando a prática foi legalizada pelas autoridades do país, as mulheres indianas vêm sendo muito procuradas por casais de estrangeiros. O motivo é o baixo preço do aluguel de sua barriga, cerca de US$ 7.000, em média. O negócio assumiu tal proporção que se fala em ‘turismo da medicina reprodutiva’.
Para conseguir realizar esse sonho, os casais contam com a intermediação de empresas especializadas. Segundo a Tammuz, que agencia casais em busca da barriga de aluguel em outros países, desde 2015 foram 30 bebês de pais brasileiros nascidos pelo método. O procedimento custa entre US$ 50 mil e US$ 110 mil (entre R$ 155 mil e R$ 342 mil).
De acordo com o fundador da agência, Roy Rosenblatt-Nir – ele e o companheiro são pais de um casal de crianças geradas da mesma forma –, o trauma de diversas tentativas frustradas em gerar um filho e a dificuldade burocrática têm levado a um aumento de 20% na procura. O processo leva de 12 a 14 meses, e o casal precisa deixar o Brasil apenas para buscar o bebê.
DEPOIMENTO
A primeira vez que fiz barriga de aluguel foi há uns 15 anos, para um casal gay muito amigo meu. Um deles cresceu comigo. Via como eles queriam um filho, mas não podiam pagar por uma barriga de aluguel. Daí conversamos sobre essa hipótese, e eles aceitaram. Foi muito emocionante para eles. Pra mim foi muito difícil porque estava crescendo algo dentro de mim que não ficaria comigo. Fiquei em casa. Não saía, porque quando alguém sabia, me criticava muito. É a pior coisa quando te taxam por algo que você acha certo. Chegou um tempo em que eu nem saía de casa. Daí o neném nasceu, eu entreguei e pronto. Passou. Não tinha muito contato com o casal porque eu mesma resolvi assim, mas eles sempre queriam notícias, então, às vezes, conversávamos. Depois, meu marido teve um câncer bem agressivo e precisava de um tratamento rápido e caríssimo, ficaria R$ 300 mil reais. O primeiro casal me apresentou outro casal que topou pagar o tratamento inteirinho do meu marido. Aceitei na hora e pedi também apoio psicológico. Essa vez foi bem melhor, pois meu marido ficou em um hospital se tratando, eu fui morar com o casal, e eles davam uma assistência para a minha filha, que ficou com a minha mãe. Depois da primeira vez que passei o que passei, e foi horrível, eu comecei a ir para a casa do casal. Os cuidados são os mesmos de uma gravidez normal, mas os casais dão muita assistência. Eles querem muito bem a saúde do neném. Dão muito amor. É lindo. Eu amo ver isso. Meu esposo faleceu, e minha filha não sabe. É muito difícil ficar longe. Essa é a pior parte: ficar longe da família. Mas hoje em dia a internet aproxima as pessoas. Sou enfermeira e, quando volto, já arrumo emprego, geralmente dois ou três, e continuo minha vida normalmente.
Roberta Ramos*, 40
Enfermeira
Barriga de alugue
*nomes fictícios
Fonte e foto: O Tempo