“Eu tinha feito o agendamento há meses. Cheguei no posto, entrei na fila, esperei pelo menos 40 minutos. Quando chegou a minha vez, vi meu nome ser anotado em uma folha de papel, em meio a uma lista de outros tantos nomes. Me disseram que não estavam fazendo o exame e não tinha nenhum prazo. Foi assustador… um caderninho velho com nomes e telefones. Triste demais.”
A situação vivida por Marcos, de 27 anos, em um Serviço de Assistência Especializada (SAE) é um protocolo que se tornou rotina em São Paulo e em outros estados, nos últimos meses.
Nos três anos em que convive com o tratamento da aids, esta foi a primeira vez em que ele teve o seu pedido para o exame de carga viral negado.
O teste é peça indispensável para o diagnóstico e o acompanhamento da doença, já que mede a quantidade de vírus HIV presente no organismo e pode detectar aqueles pacientes que desenvolveram resistência ao tratamento.
Pelo menos outras duas unidades do SAE em São Paulo, Butantã e Santo Amaro, em que o site de notícias HuffPost Brasil checou, não estão aplicando o teste desde que Ministério da Saúde iniciou o racionamento dos kits, no fim de maio.
Para a Maria Clara Gianna Garcia Ribeiro, diretora Técnico de Saúde III (substituta) e coordenadora Adjunto do Programa Estadual DST/Aids de São Paulo, a situação atual não é nada “confortável”. Na capital paulista, os exames são realizados em laboratórios regionais que atendem cerca de 200 ambulatórios.
Em entrevista ao HuffPost Brasil, ela explicou que a Secretaria Estadual de Saúde foi orientada pelo Ministério da Saúde a realizar apenas os exames em casos considerados “indispensáveis”, como gestantes e crianças.
Porém, nas duas unidades em que a reportagem entrou em contato, o exame não estava sendo realizado em nenhuma condição.
“Há bastante tempo não convivemos com uma situação como esta. Há uma dificuldade no encaminhamento dos kits pelo Ministério da Saúde. O prazo é agosto, mas ainda não recebi um informe oficial do ministério para saber a partir de qual data esse processo deve ser regularizado. É interessante também a gente receber deles um informe que possa ser repassado para a população, para que ela fique mais tranquila“, explica a coordenadora.
De acordo com Garcia Ribeiro, houve custos acima do esperado em um processo licitatório para os exames de carga viral e o contrato não pôde ser firmado pelo Ministério da Saúde. A medida, então, foi fazer uma nova licitação.
Em julho do ano passado, a pasta iniciou um processo de compra dos exames, mas, de acordo com o ministério, apenas uma empresa fez parte do pregão eletrônico, o que elevou o preço de oferta.
Em comunicado oficial enviado ao HuffPost Brasil, a pasta nega que há racionamento dos kits.
De acordo com o órgão, foram distribuídos 46,4 mil testes para todo o País, quantidade que deve manter a rede pública abastecida até o fim de julho, e o contrato de uma nova compra de 1,59 milhão de testes já foi encaminhado.
Segundo o Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, a orientação para que os estados priorizassem populações não significa o desabastecimento da rede.
“Essa foi uma medida de precaução, caso o processo do segundo pregão também fosse impedido, o que não ocorreu. O Ministério da Saúde encaminha os testes aos estados, que são responsáveis pela logística local de abastecimento dos municípios. Por fim, cabe esclarecer que o teste de carga viral é realizado a cada seis meses em pacientes vivendo com o vírus HIV, para monitoramento da doença. Em 2016, foram realizados mais de 550 mil testes de carga viral em todo o País“, explica a nota.
Além de São Paulo, pelo menos outros dois estados passam pela mesma situação. A Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro confirmou por telefone ao HuffPost Brasil problemas na aplicação do exame. Em nota, a secretaria de Pernambuco ressaltou a dependência do ministério.
“Há o racionamento dos exames de carga viral, que são encaminhados pelo Ministério da Saúde. Para mais informações sobre essa situação, você precisa checar com o órgão federal“, explicou a assessoria do órgão de Pernambuco.
Fracionamento de medicamentos
Assim como Marcos, João procurou o HuffPost Brasil ao ser surpreendido em sua última visita de rotina ao posto de saúde no bairro do Butantã, na capital paulista.
Ele costumava retirar uma quantidade de medicamentos antirretrovirais para o seu tratamento que o possibilitava ficar até seis meses abastecido.
No entanto, o posto de saúde só foi autorizado a fornecer a medicação para um mês.
Em outros estados, a situação é ainda mais preocupante.
Pacientes do Amazonas reclamaram da oferta de medicamento para apenas dez dias, enquanto o frequente seria a quantidade para três meses.
Ao HuffPost Brasil, a Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, órgão responsável pelo tratamento de HIV/aids no estado, afirmou que os estoques dos medicamentos estão sendo regularizados e os pacientes voltarão a receber a medicação para uso prolongado.
“A Coordenação ressalta que adotou o sistema de fracionamento dos medicamentos como medida para que pudesse atender todos os pacientes, devido ao atraso na entrega dos mesmos pelo Ministério da Saúde, e para não faltar o insumo até a regularização dos estoques. O sistema adotado emergencialmente permitiu que todos os pacientes com HIV continuassem a seguir o tratamento, sem prejuízos.“
Baixas nos estoques
Em São Paulo, a coordenadora adjunta do Programa Estadual DST/Aids afirma que, desde março, o estado tem recebido remessas menores dos medicamentos. Um dos componentes do tratamento popularmente conhecido como “Três em Um” é o que mais sofreu impacto nos repasses.
“Estamos recebendo quantitativos menores e fracionados do Ministério da Saúde. Não estamos em falta. Mas, essa quantidade nos permite atender a necessidade do estado com muito ajuste e muita preocupação. Não estou minimizando a situação. Estamos trabalhando de maneira integrada com o ministério para diminuir os impactos que essa situação pode ter na vida dos pacientes“, explicou Garcia Ribeiro.
Para Claudio Pereira, presidente do Grupo de Incentivo à Vida, uma das principais organizações nacionais em apoio aos soropositivos, a maior preocupação no fracionamento dos medicamentos está no impacto que essa estratégia pode ter sobre aqueles que estão no início do tratamento.
A pessoa pode acabar desistindo de voltar no posto para continuar o tratamento. É um risco. A pessoa fica receosa.
Segundo ele, o paciente fica dependente de ter que ir ao local e não conseguir retirar os medicamentos. “O nosso grande receio é de que, por trás desse fracionamento, as unidades tenham recebido cotas menores de medicamento. E o que quer dizer essa cota menor? Quer dizer que a compra está sendo feita de forma desorganizada, e corre o risco de faltar medicação“, explica Pereira.
Procurado, o ministério negou que falte medicamentos:
“O Ministério da Saúde adquire e distribui regularmente, para aproximadamente 500 mil pessoas, 37 apresentações de medicamentos antirretrovirais que compõe o tratamento de HIV/Aids. O Ministério da Saúde afirma que não há falta de medicamentos para aids em São Paulo e em nenhum outro estado do país. Cabe esclarecer que não há nenhum problema de ordem financeira para aquisição desses insumos, assim como nenhuma orientação a estados e aos municípios no sentido de que seja feito o fracionamento dos medicamentos.“
A logística dos medicamentos
O SUS é um sistema tripartite que possui responsabilidades compartilhadas entre estados, municípios e União.
No caso do tratamento de HIV/Aids, o Ministério da Saúde é o responsável por comprar os medicamentos antirretrovirais e repassá-los para os governos dos estados, que encaminham para as prefeituras dos municípios por meio de um fluxo de distribuição gerenciado.
No caso de São Paulo, excepcionalmente, o município também recebe remessas diretas do governo federal.
Todos os estoques são acompanhados por um sistema informatizado, o Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM). Ele é consolidados pelo estado que é responsável pelo gerenciamento dos estoques dos antirretrovirais recebidos.
Por meio do SICLOM, os gestores conseguem remanejar estoques e fazer pedidos.
“É um sistema que favorece muito a distribuição. Temos uma equipe de farmacêuticos que trabalham lado a lado com o sistema para o remanejamento dos medicamentos. Em uma situação não tão confortável como essa, o remanejamento é imprescindível. Aqui, trabalhamos com muita sintonia com a equipe do município“, explica a coordenadora adjunta do Programa Estadual DST/Aids de São Paulo.
O Brasil e a aids
São pelo menos 830 mil pessoas em tratamento de aids no Brasil, de acordo com o relatório da Unaids.
O País é o que mais concentra novos casos de contágio por HIV na América Latina, respondendo por 40% das novas infecções.
Desde 1996, também foi um dos primeiros países a fornecer tratamento gratuito pelo SUS (Sistema Único de Saúde).
Há quatro anos, o governo adotou novas estratégias de combate ao vírus. Em 2015 o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids reconheceu o Brasil como referência mundial no controle da epidemia.
Entre as medidas, destacavam-se a contagem dos linfócitos (CD4), as coberturas de tratamento antirretroviral (TARV), a ampliação da testagem, a conscientização sobre o uso da camisinha e o início precoce do tratamento em caso de soropositividade.
Porém, no ano passado, uma pesquisa da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de aids)chamou atenção para o fato de que os remédios utilizados no Brasil já estão ultrapassados em relação aos de outros países.
À época da divulgação, a diretora do Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais do Brasil, Adele Benzaken, considerou o documento como “político”.
“Trata-se de um documento político, de posição e de apontamentos para onde deve ir a resposta brasileira no atual contexto do sistema de saúde (SUS). A comprovação de que alguns avanços ocorreram estão bem documentados no report 90-90-90”, argumentou.
No compromisso internacional 90-90-90, o Brasil tem até 2020 para atingir as metas de controle, redução e tratamento.
Até o final do prazo, 90% de todas as pessoas vivendo com HIV devem saber que têm o vírus; 90% das pessoas diagnosticadas com HIV vão ter recebido terapia antirretroviral; e 90% das pessoas recebendo tratamento terão sua carga viral indetectável e já não serão transmissoras do vírus.