Junho de 2015. O boca a boca entre pacientes e médicos que levou um professor da Universidade de São Paulo (USP) a distribuir por anos uma substância com potencial de curar o câncer se espraia pelo Brasil. Mesmo sem registro na Anvisa ou certeza científica sobre a eficácia e segurança da fosfoetanolamina sintética, a “pílula do câncer” era anunciada como a cura da doença. Era dada a largada à corrida ao Judiciário para garantir o tratamento.
Milhares de liminares foram concedidas – eram 13 mil ações em fevereiro de 2016. O laboratório de química da USP em São Carlos, onde as pesquisas eram realizadas de forma independente pelo professor Gilberto Chierice, se transforma em balcão de distribuição da substância. Pedidos chegam de todos os cantos do Brasil, inclusive para garantir o fornecimento a animais de estimação. Juízes exigem que a universidade – e não um médico – indique a dosagem de ingestão. Magistrados vestem o jaleco branco ao garantirem a pílula para pacientes sem prescrição médica. Ordens judiciais determinam a busca e apreensão da pílula azul. Um juiz de Rio Preto bloqueia R$ 3 milhões das contas da USP por descumprimento de decisão.
Apesar de representar o momento de dor mais aguda de um fenômeno observado desde meados dos anos 90, a corrida pela “pílula do câncer” é apenas um exemplo daquilo que a professora da USP Maria Paula Dallari Bucci chama de doença institucional. Junto com a doutora em direito Clarice Seixas Duarte, Maria Paula lançou em maio o livro Judicialização da Saúde: A Visão do Poder Executivo. A obra foi editada pela Saraiva e será lançada em Brasília, no dia 19/06.
Mais que diagnosticar o problema, a coletânea de 16 artigos produzidos pelos pesquisadores da linha Direitos Sociais e Políticas Públicas do Mackenzie olha para a frente ao apontar soluções e arranjos jurídicos e institucionais para reduzir a judicialização – estratégias que induzam o poder público a voltar ao protagonismo da organização da política, na medida em que recupera a credibilidade perante o Judiciário, mas especialmente perante os usuários do sistema de saúde.
“No Direito somos preparados para observar fenômenos passados e existe uma espécie de barreira para prescrever o futuro. Fazemos prescrição sem método”, afirmou Maria Paula.
O livro é lançado em meio ao compasso de espera da definição pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça sobre a possibilidade de a Justiça obrigar o Poder Público a fornecer medicamentos não disponibilizados pelo SUS, inclusive aqueles de alto custo e sem registro na Anvisa.
O Judiciário foi alçado a ator principal na definição da moldura dentro da qual se desenhará o rumo do sistema de saúde brasileiro. Afinal, o direito à saúde previsto no artigo 196 da Constituição é um direito absoluto ou garantido dentro do limite da política pública?
Ocorre que no cenário de falta de comunicação clara ao usuário e desarticulação entre União, Estados e municípios, ficou mais fácil bater na porta do Judiciário. No emaranhado de leis, regulamentos, portarias e anexos ficou igualmente mais confortável para o juiz aplicar a Constituição do que as normas que regem a política de saúde.
Espinha dorsal do sistema de fornecimento de medicamentos, a Rename (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais) é regulamentada por portaria do Ministério da Saúde e os remédios fornecidos são previstos nos anexos da norma.
“Entre a Constituição e a norma técnica, o juiz fica com a primeira. Mas norma técnica também é norma e o juiz não pode escolher aplicar”, afirma Maria Paula, que foi Secretária de Educação Superior durante parte do governo Lula.
A união da falta de aprimoramento da estratégia do Executivo e a excessiva judicialização tem custo. Só o Ministério da Saúde gastou, em sete anos, R$ 4,5 bilhões para atender a ordens judiciais para a compra de medicamentos, equipamentos, dietas, suplementos alimentares, gastos com cirurgias, internações e depósitos judiciais — um aumento de 1.010% entre 2010 e 2016.
Mais que o impacto financeiro, transpor a responsabilidade de gerenciamento do Executivo para o Judiciário é criar antagonismo entre conquistas que deveriam andar juntas: o direito à saúde e o Estado Social. Ao mesmo tempo em que tirou o Poder Público da inércia e cobrou melhorias, a onda explosiva de ações judiciais pleiteando medicamentos e tratamentos não fornecidos pelo SUS passa ao Judiciário a tarefa de definir uma política para alguns e não para todos.
Daí a pertinência da obra em apontar as reações do Estado ao fenômeno, reconhecer e apontar soluções jurídicas e institucionais – inclusive a partir de experiências exitosas -, que passariam necessariamente pela articulação entre os poderes. O Judiciário induzindo o cumprimento e aprimoramento da política pública. O Executivo retomando sua autoridade de gestor efetivo do sistema.
O desafio para o sucesso da ação coordenada passa, inevitavelmente, pela política. “Nos perguntamos por que as experiências exitosas de articulação reconhecidas no livro foram interrompidas. Ensaiamos uma resposta: porque do ponto de vista político não há sustentação para os próximos passos seja porque o ministro ou o secretário de saúde mudou seja porque cada órgão quer ter seu protagonismo. Nos falta o espírito coletivo”, afirma Maria Paula.