Cansado de sofrer bullying e de se sentir isolado por causa do peso, Flávio Cadegiani decidiu ser médico e se especializar em endocrinologia. Vindo de uma família de advogados, ele dispensou a carreira do direito pensando em tratar o problema dele e ajudar a evitar estragos nas vidas de outras pessoas que sofrem com a obesidade.
O médico afirma que sofreu muito com o excesso de peso. Mais do que o aspecto físico, o incômodo maior era pelas intimidações, brincadeiras e transtornos psicológicos que a obesidade gerou.
“Tem gente que diz que bullying é besteira, mas é coisa séria, deixa a gente travado. Sempre que vejo alguém, criança ou adolescente, sofrendo com isso, quero ajudar. Eu tomo o sentimento para mim, mesmo [que a pessoa tenha] outros problemas, mas o bullying do gordinho eu sinto na pele, faz mal, deixa sequelas”, afirma o médico.
Cadegiani chegou a pesar mais de 70 kg quando ainda tinha 8 anos. Na adolescência ele teve compulsão alimentar, sofreu com o “efeito-sanfona”, emagrecendo e engordando diversas vezes. Entre 2006 e 2007, ele atingiu os 143 kg.
Hoje, aos 31 anos, o endocrinologista diz que encara a comida como um vício, que vê a obesidade como “coisa séria” e que para ele “não existe ex-obeso”. O médico faz questão de chamar a atenção para os riscos das aparentes brincadeiras inocentes com quem sofre com a obesidade.
“Consegui resolver os problemas antes de ser especialista, mas tive vontade de virar endócrino desde que fiz o meu tratamento, com o meu médico, pela forma que ele abordava. Ele me explicou o que estava investigando. Desde que quis fazer medicina decidi ser endócrino. Não tive vontade de exercer outra especialidade”.
Foi na escola que ele recebeu apelidos por causa do peso e acabou se isolando dos colegas, entrando em um ciclo de sofrimento, que era levado para outros ambientes. “Ouvia deles ‘baleia’, ‘rolha de poço’, essas coisas. Em um momento, fui em um acampamento e os colegas saíam para um lado e eu saía para outro”.
Cadegiani declara que atualmente talvez as consequências dos xingamentos e provocações seriam diferentes. Paraa ele, os tempos hoje são outros e mais fácil lidar com problemas que têm na origem a relação com outras pessoas e como elas identificam os “defeitos” dos outros.
“Se eu tivesse hoje seria diferente. Tem muito mais gente acima [especialistas que tratam o assunto com seriedade], e o bullying é reconhecido. Na época achavam aquilo frescura. Na terapia depois é que reconheci, eu tinha problema para reconhecer, eu era muito nerd, minha mãe se sentia culpada”.
Transtornos
Quando tinha 13, 14 anos, Cadegiani passou por transtornos alimentares. “Aos 13 eu estava bem, cresci 30 centímetros sem ganhar peso, ou ganhei 1 kg, talvez. Mas em seguida eu tive anorexia nervosa, depois passei para bulimia”.
Desde que atingiu o peso máximo, Cadegiani perdeu 50 kg. Segundo ele, para isso foram necessários dieta, atividade física, remédios e a consciência do que causava o problema, da origem da compulsão.
“Compreendi como funcionava. Não foi fácil, mas consegui me controlar. Hoje sei dos meus limites. Foi com 22 anos que aprendi como identificar as emoções e como isso era atrelado ao [ato de] comer”.
Atualmente, o endocrinologista de 1,84 m pesa 97 kg, o que dá um índice de massa corpórea (IMC) de 28,65. A taxa é usada para medir o nível de gordura em um paciente. Os especialistas consideram saudável e dentro do peso pessoas com índice entre 18,5 e 25. O número é obtido pelo peso dividido pelo quadrado da altura.
“Meu IMC é de sobrepeso, mas como médico acho importante dizer que o índice é bom para medida de saúde pública, nem sempre é real. Eu tenho 97 kg, mas com 7,8% de gordura. A minha tendência é crescer mais massa muscular”.
‘Obeso para sempre‘
Como paciente e endocrinologista, Cadegiani aprendeu que a guerra contra a balança é feita de batalhas frequentes. O médico afirma que se o paciente não luta contra a origem do problema ele volta a ganhar peso.
“Não existe ex-obeso. Eu venço essa batalha a cada dia”, diz. Segundo ele, a “questão química” é determinante e por isso é preciso estar atento. “Quando se está na compulsão, a relação química é muito forte. Você fala para ela [pessoa] parar de comer, ela come o dobro. A recompensa cerebral é muito grande”.
Mesmo com o peso controlado e conhecedor do transtorno, o médico permanece em terapia por saber que uma recaída pode pôr tudo a perder. “Obesidade é uma doença crônica e precisa de tratamento crônico”, afirma.
Para tratar o problema é preciso levar em consideração a situação do paciente, ele diz. “Cada caso é um caso. [No tratamento] falta individualização. O caso é tratado com preconceito, com estigma. O tratamento com remédio é pra 18 a 24 meses, mas usa-se três meses, em média. Mas também não é só dar o remédio sem saber o que gerou [o sobrepeso]. Você usa e depois ele volta a engordar”.
Segundo Cadegiani, até mesmo especialistas enxergam o transtorno de um jeito que não favorece o tratamento. “Ouço muito endócrino dizer ‘prefiro tratar a doença do que a obesidade’. E a obesidade é o quê? Me choca endócrino dizer isso”.
O médico diz que é o paciente quem deve ter consciência do tratamento. “Quando chega alguém eu não entro na história, ela é que tem que se abrir. Eu falar não ajuda em nada. Ele tem que permitir ajudar”.
Segundo Cadegiani, é frequente aparecer alguém com um membro da família ou um amigo pedindo para ser atendido. “É uma coisa comum [a pessoa dizer] ‘trouxe meu pai, meu marido’. Eu sempre pergunto ‘mas ele está disposto a fazer isso?’”
O médico atua em um projeto na Vila Planalto, em Brasília, para acompanhar pacientes com obesidade. No programa há oito anos, ele afirma que tenta usar da experiência pessoal e da profissão para auxiliar quem precisa. “É uma missão, sinto verdadeiramente que é minha missão.”
Quando consegue ajudar o paciente e os resultados aparecem, Cadegiani diz sentir uma “satisfação imensa”. “Há episódios em que eu chego a chorar. É aquela coisa: ‘Faça o que ama e não vai trabalhar um dia na vida’. O nível de satisfação é muito maior. Isso é muito maior do que qualquer preço que eu cobre na consulta”.
Fonte: G1