É recorrente a preocupação do Estado com a arrecadação de recursos provenientes do ressarcimento ao SUS pago pelas operadoras de planos de saúde. O momento crítico pelo qual passa a economia do país aviva a administração pública pela cobrança da obrigação legal instituída pela Lei de Planos de Saúde.
O subfinanciamento da saúde pública é crônico, e sua penúria decorre de uma insuficiente destinação de recursos do Orçamento para a pasta. Nada mais justo seria tentar angariar incremento no custeio assistencial do sistema por meio da cobrança do ressarcimento ao SUS.
No entanto, a cobrança de tal recurso, objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), é digna de reflexão.
A primeira delas é simples e não requer muita explicação. Com a adoção do princípio da universalização, o Estado, através do SUS, tem o dever de prestar a assistência à saúde a todo cidadão, independentemente de uma contraprestação pecuniária. Este dever tem fonte de custeio, definido na Constituição, obtida por meio da arrecadação de tributos e corresponde a uma fatia do Orçamento público.
É fácil entender que o cidadão — ao pagar impostos diretos e indiretos que compõem o sistema tributário nacional provedor dos recursos que promovem os serviços essenciais, entre os quais a assistência à saúde prestada pelo SUS — pode também optar por pagar um plano ou seguro. Assim, o cidadão detentor de plano acaba participando duplamente do financiamento da saúde pública: no pagamento de tributos e no ressarcimento ao SUS, via operadora. Não seria demais lembrar que a carga tributária suportada pela economia brasileira é uma das maiores do mundo.
O fundamento legal pelo qual se instituiu o ressarcimento ao SUS foi uma equivocada avaliação evidenciada por um suposto “enriquecimento sem causa” por parte das operadoras de planos, que estariam auferindo lucro ao deixar de custear o procedimento prestado pelo serviço público buscado pelo beneficiário daquela operadora. Seria lícito e justo que o Estado se ressarcisse quando ao gasto ocorrido. Aqui, a reflexão exige uma digressão à Ciência Jurídica.
Enriquecimento sem causa é um instituto jurídico que exige o preenchimento de certos requisitos para a sua configuração. Primeiro, o empobrecimento daquele que arca com o custo do procedimento utilizado pelo beneficiário de plano de saúde, no caso o SUS. Segundo, o enriquecimento da parte que deveria pagar pelo evento por conta de acordo contratual, mas que não o fez, a operadora. Por último, a característica essencial do instituto que lhe atribui o nome, a ausência da causa. Ou seja, deve inexistir uma causa que justifique o atendimento do beneficiário do plano pelo sistema publico universal de saúde.
Fica visível, portanto, baseado neste último requisito, a inconsistência do instituto “enriquecimento sem causa”, quando do uso do SUS pelo beneficiário de plano de saúde. Inquestionável dizer que, além de a causa existir, ela constitui um comando constitucional, no qual a saúde é direito de todos e dever do Estado.
É fato que não se pode imaginar a sobrevivência do setor no Brasil como um todo sem a presença e atuação do setor privado suplementar, pois, indubitavelmente, este segmento se configura como um eficaz meio de desoneração das prestações dos serviços públicos de saúde. Mas daí querer que o setor privado participe duas vezes no financiamento do SUS!
O assunto requer uma profunda reflexão pelo leitor. A tendência moderna do Estado social não pode se sobrepor às regras legais que modelam o regime capitalista de convívio e parceria entre o setor publico e privado.
Cristiane Jourdan é médica e gestora de planos de saúde – O Globo