Florianópolis, em Santa Catarina, é uma cidade de muitos forasteiros, e na medicina não foi diferente. Entre os médicos que se transferiram para cá e ajudaram a transformar o atendimento à saúde, implantando cursos e hospitais e realizando as primeiras cirurgias de alta complexidade (para a época), está Isaac Lobato Filho, um maranhense que chegou em 1950, durante a gestão do governador Aderbal Ramos da Silva, que lhe ofereceu um salário acima da média para trocar o Rio de Janeiro pela acanhada capital catarinense, carente de pneumologistas. Esse médico louvado pela competência e ousadia tem 92 anos.
Cardiologista e cirurgião, Lobato desembarcou em Florianópolis dois anos depois de se graduar pela Faculdade Nacional de Medicina, no Rio. Aqui, ele introduziu as cirurgias torácicas e cardíacas e ajudou a criar e instalar a Faculdade de Medicina da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde foi professor titular até se aposentar. No governo Celso Ramos, entre 1962 e 1964, esteve entre os criadores do Instituto de Cardiologia de Santa Catarina, do qual foi diretor em 1963. Também foi superintendente da Federação Catarinense de Saúde e responsável pelos institutos de Diagnóstico Precoce do Câncer e de Hemoterapia – este, transformado depois em Fundação Hospitalar de SC.
Em entrevista concedida esta semana à RIC TV, o médico Isaac Lobato Filho disse que cuidar das pessoas foi, para ele, uma missão de vida. Sempre trabalhou muito e enfrentou dificuldades, seja no cotidiano da profissão, seja nos projetos que abraçou ao longo da carreira. Mas nunca esmoreceu, e a prova de que é exemplo para outros profissionais da saúde é o reconhecimento que sempre teve. Foi presidente da ACM (Associação Catarinense de Medicina) entre 1963 e 1965 e fez parte do grupo de médicos associados que construiu a sede da entidade, na rua Jerônimo Coelho – um dos primeiros condomínios da cidade, com seis andares, sendo que o sexto foi escolhido como sede da associação.
Na época, os portadores de doenças cardíacas eram atendidos em um ambulatório na rua Felipe Schmidt, inicialmente com a seleção dos pacientes para o posterior tratamento cirúrgico. As operações eram realizadas no hospital Governador Celso Ramos. Pela dedicação à medicina local, Lobato recebeu em 1986 o título de Cidadão Honorário de Florianópolis.
Convite tentador do governador Aderbal
O doutor Isaac Lobato Filho diz que seguiu a carreira por influência de um irmão dez anos mais velho que era médico e morava no Rio de Janeiro. Com 16 anos ele acabou o curso ginasial em São Bento, no Maranhão, e foi sozinho no navio para a então capital da República. Lá se inscreveu na Universidade do Brasil com a intenção de ser o segundo médico da família. Conheceu os laboratórios do curso e os meandros da atividade, e também os problemas que o aguardavam na profissão. “Quando o professor faltava, logo aparecia outro para dar aula, então não tinha chance de folga”, conta hoje. Depois de formado, sempre fiel à missão de cuidar, dava plantão num pronto socorro, no Rio de Janeiro, onde funciona hoje o Hospital Getúlio Vargas. Chegou a fazer jornadas de 24 horas atendendo pacientes, nos fins de semana.
Foi quando veio o convite do governador Aderbal Ramos da Silva. Ele conta os detalhes: “Eu já tinha dois empregos quando fui convidado por um amigo do meu irmão, dr. Francisco Benedetti, que era chefe do Ipase (Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado) para o Brasil inteiro naquele tempo. O governador pediu ao Benedetti que indicasse um médico aqui. Tomei o avião e encontrei o dr. Aderbal. Primeiro dei um passeio. Conheci o hospital Nereu Ramos, gostei, era muito limpo. Disse ao governador que já tinha dois empregos no Rio de Janeiro e que ganhava quatro mil cruzeiros em cada um deles. Ele disse que faria um contrato de seis mil, que era o máximo que poderia pagar. Respondi que não iria perder dois mil cruzeiros, tomei o avião de volta e fui procurar o dr. Benedetti. Ele falou: ‘Você vai para lá e vai ganhar os oito mil porque eu estou te dando aqui dois mil’. Foi assim que vim parar em Florianópolis”.
Uma vez na cidade, Lobato desenvolveu no hospital Nereu Ramos um serviço de cirurgia de tórax e cirurgia cardíaca. Isso perdurou por um longo período, até que o governador Celso Ramos construiu o hospital que leva o seu nome e o médico mudou de endereço, desempenhando suas atividades na nova casa de saúde.
A ousadia de criar um curso de medicina
Nos primeiros anos, a Associação Catarinense de Medicina funcionava em duas salas alugadas na rua João Pinto. Ali, num sobradinho modesto, um grupo de médicos cometeu a “loucura” (expressão do próprio Isaac Lobato) de criar a Faculdade de Medicina, desafiando a descrença geral da própria categoria. A ACM era presidida pelo médico Antonio Moniz de Aragão quando, em julho de 1957, uma assembleia geral extraordinária foi realizada com a finalidade de fundar a faculdade. A comissão organizadora era formada pelos médicos Roldão Consoni (presidente), Isaac Lobato Filho (tesoureiro) e Henrique Prisco Paraíso (secretário), o único “não estrangeiro” (como eram chamados os profissionais de outros Estados) da equipe.
Não havia recursos para implantar a faculdade, ma eles encontraram uma saída. Lobato conta: “Existia na época aqui um cidadão de Ribeirão Preto (SP) que vinha vendendo os carros que trazia mais baratos do que os concorrentes. Ele dizia o seguinte: ‘eu preciso comprar o carro, mas não tenho dinheiro, então eu vou vender loteria aqui e você vai trazer um carro bonito, conversível’, e ele fez isso. Foi feito o sorteio e ganhamos um bom dinheiro. Nós conseguimos um lugar na rua Ferreira Lima. Tinha um grupo de 200 pessoas espíritas que não tiveram mais dinheiro [para erguer o edifício] e consegui comprar aqueles títulos, e assim tomamos conta daquele prédio”.
Com passagem também pelo Gabinete do Planejamento estadual, Lobato e os demais membros do grupo contaram também com recursos do governo de Santa Catarina, do Ministério da Saúde, de doações espontâneas de pessoas físicas e jurídicas para concluir a obra. No caso do Hemosc (Centro de Hematologia e Homoterapia de SC), a gênese foi com o Centro Hemoterápico Catarinense, em 1964, período em que o médico Isaac Lobato começou a fazer cirurgias de tórax e onde precisava de sangue e de hemoterapeutas para dar conta do trabalho.
Dono do registro nº 23 no Cremesc (Conselho Regional de Medicina), ele lembra com lucidez de muitos momentos da carreira, desde que deixou o Maranhão até se tornar o pioneiro na área de cirurgia cardiotorácica em Florianópolis. Figuras como o dr. Francisco Benedetti, sócio do hospital onde o governador Aderbal Ramos da Silva foi fazer um tratamento pulmonar, e colegas das iniciativas heroicas de cinco ou seis décadas atrás, são sempre lembradas por ele.
Uma das primeiras cirurgias feitas no hospital Nereu Ramos foi tirar um pulmão atacado pela tuberculose – um acontecimento extraordinário para o tamanho da cidade. Um repórter da época publicou no jornal uma reportagem de página inteira dizendo: “sete médicos salvam a vida de um paciente”.
‘Muita gente acreditou em mim’, diz médico
Numa entrevista à revista “ACM News”, Isaac Lobato Filho falou de medidas que precisou tomar nos idos dos anos 50 na Ilha: “A capital catarinense não tinha anestesista e tive que convencer o meu amigo Danilo Duarte Freire a passar uma temporada para estagiar no Rio de Janeiro e voltar como especialista na área”. A coragem do médico ia além, e junto com um colega comprava cachorros para operar e aprender técnicas de cirurgias pulmonares e cardíacas, extracorpóreas e com coração parado. “Os desafios da medicina eram diários”, afirmou.
A questão do associativismo também estava engatinhando quando o médico começou a trabalhar na cidade. Prevalecia um grande amadorismo e as demais regiões do Estado não estavam habituadas ao congraçamento com a Capital. “Em Santa Catarina havia cerca de 200 médicos e, na época, conseguimos a adesão de todos eles para a ACM”, contou. Foi quando a categoria se fortaleceu, encampando lutas que eram de interesse dos médicos e da área da saúde como um todo.
Com a experiência de sete décadas clinicando e operando, Lobato Filho admite que a medicina evoluiu muito, porém alerta que os médicos já foram mais respeitados e que houve, no passado, mais atenção à rede pública de saúde. Na mesma entrevista à revista da ACM, ele declarou: “Hoje o problema mais sério da medicina é prestar atendimento com a qualidade que desejamos e que a população precisa. Há muita demanda reprimida, além de inúmeros outros problemas. O câncer e as doenças cardiovasculares são o mal do século e também os principais desafios, por isso a profilaxia é fundamental e precisa ser estimulada”.
Ao fazer um balanço de tudo, o dr. Lobato é sucinto: “Estou satisfeito. Tudo foi muito difícil porque é uma cidade pequena em que tinha que lutar, mas eu tive sorte porque fui muito influente. Muita gente acreditou em mim”. Sua filosofia parte da convicção de que “nada na vida é fácil, tem que saber lutar”. E mais: “Dificuldades vamos ter a vida inteira, por isso não se deve desistir nunca”.
Fonte: Nd Online