Hospitais e UPAs desabastecidos. Faltam materiais básicos, como luvas, gazes e seringas, medicamentos, exames e até alimentação. Em meio à crise financeira por que passa o governo estadual, funcionários terceirizados ficam com salários atrasados e pacientes, sem tratamento. Nesta quinta-feira, a notícia de que o convênio da Secretaria estadual de Saúde com a organização social (OS) que administra o Hospital São Francisco na Providência de Deus, na Tijuca, está sendo rompido deixou pacientes do Centro de Referência em HIV e Aids, montado pelo estado na unidade, em desespero.
O hospital, que também recebeu um centro de transplantes de fígado e rim montado pelo estado, sofre com atrasos nos repasses. A situação se arrasta há meses. Em setembro no ano passado, a unidade ameaçou fechar as portas e, em janeiro deste ano, chegou a suspender os transplantes.
Funcionários do hospital afirmam que estão sem receber salários há quatro meses. Segundo relato de pacientes, muitos já pararam de trabalhar, prejudicando o atendimento. Cerca de 700 portadores de HIV que são atendidos no local enfrentam dificuldades para prosseguir no tratamento.
— Ontem (quarta-feira) fui ao hospital buscar medicação e encontrei o ambulatório vazio. Conversei com funcionários e soube que as internações foram suspensas, e os que estão internados serão transferidos — conta o militar Ruggery Gonzaga, de 26 anos.
Para ele, a transferência dos pacientes pode levar ao abandono do tratamento:
— No tratamento do HIV, há um fator psicológico muito grande. Os pacientes criam vínculos com a equipe e qualquer interferência pode levar ao abandono do tratamento.
Protesto no Hospital Getúlio Vargas
Enfrentando atrasos de salários desde dezembro do ano passado, funcionários do Hospital Estadual Getúlio Vargas (HEGV), na Penha, realizaram, na quinta-feira, 25 de julho uma manifestação da porta da unidade. Eles, que haviam recebido metade do vencimento de julho no último dia 12, ficaram aliviados com o depósito do restante do pagamento no fim da tarde de quarta-feira.
— O pagamento deveria ter sido no dia 5, mas há meses enfrentamos esses atrasos. Como será no mês que vem? Trabalhamos estressados, com contas vencidas. Chegamos aqui e ainda enfrentamos falta de material para trabalhar — disse uma técnica de enfermagem.
Segundo funcionários que participavam do protesto, é comum faltar fraldas e outros materiais básicos:
— Quando a família não compra, o paciente fica com a fralda suja. Tudo é racionado. Não é raro o antibiótico acabar no meio do tratamento. O médico é obrigado a trocar a droga e recomeçar o esquema. Com isso, o paciente usa antibiótico por mais tempo que o necessário ou usa uma droga que não é a mais indicada e a infecção persiste.
Pedro Renato Santos, de 56 anos, acompanha a tia, de 86, internada há 22 dias no HEGV. Na última segunda-feira, Isaura Martins, que quebrou o fêmur, seria operada.
— O hospital estava sem limpeza, e a cirurgia foi suspensa. Nesta quinta-feira, enfim, ela foi operada. Vejo um óbito atrás do outro aqui dentro. Os profissionais tentam trabalhar, mas falta até álcool — contou Pedro Renato, acrescentando que, no último sábado, apenas duas técnicas de enfermagem atendiam uma sala com mais de 40 pacientes. — Os acompanhantes precisam ajudar a trocar fralda e dar comida aos pacientes, porque elas não têm como dar conta de tanta gente.
Nesta quinta-feira, a limpeza foi retomada. Já a cozinha continua parada. O hospital contratou, em regime de urgência, um fornecedor externo. Desde terça-feira, os pacientes recebem apenas sopa.
Na tarde desta quinta-feira, a dona de casa Ana Lúcia Neves, de 50 anos, procurou o HEGV para tentar atendimento para sua mãe, Maria das Neves Oliveira. Aos 80 anos, a idosa já havia sido examinada num posto de saúde em Irajá, onde a família foi orientada a procurar uma emergência.
— Como minha mãe já foi operada aqui, resolvemos vir para o Getúlio Vargas. No posto, viram que a glicose dela estava muito alta e a pressão em 11 por oito. Ela está muito pálida e desmaiou no posto. Disseram que ela deveria fazer um eletrocardiograma. Mas chegamos aqui na emergência e o médico só mediu a pressão. Disse que não era caso de emergência vermelha e que eu devo procurar uma UPA. Estou desde as 8h na rua, tentando atendimento. Já estamos muito cansadas. Vamos para casa. Desisto de tentar atendimento — disse Ana Lúcia.
UPAs sem remédios
A crise afeta também o atendimento nas UPAs administradas pelo governo estadual. Quem procurou, ontem, as unidades de Copacabana e da Taquara recebeu atendimento, mas foi embora sem medicação.
— Eu estou sentindo uma dor terrível de dente. A dentista olhou e me disse para procurar o mais rápido possível um dentista para eu fazer um canal. Me receitou amoxilina (antibiótico) e dipirona, mas não tinha na farmácia. E eu não tenho dinheiro para comprar nem para pegar um ônibus e procurar outra unidade — disse, sem conseguir segurar as lágrimas, Lorrana Vianna Teixeira, de 20 anos.
Joana Lima, de 19 anos, levou o filho Davi, de 10 meses, para ser atendido.
— Ele está gripado. A pediatra examinou e passou quatro remédios. Nenhum tinha na farmácia da UPA — contou.
Na Taquara, a sala de espera estava cheia na tarde desta quinta-feira. Já a sala de medicação, vazia.
— Nesta manhã, recebemos relatos de que não havia seringas para aplicar medicação. Faltavam até gaze e algodão e nenhuma medicação para uso externo — disse Jorge Darze, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado do Rio.
Reportagem do “Bom Dia Rio”, da Rede Globo, mostrou uma lista de 37 medicamentos que acabaram ou estão acabando na UPA de Copacabana. Pacientes relatavam que até eram atendidos, mas não havia remédios na unidade.
Laboratório deixa Iecac
Mara Lucia Moreira Áreas, de 53 anos, teve palpitações ao saber que pode não conseguir fazer um exame fundamental para o tratamento de uma esclerose sistêmica. Há cinco anos, a aposentada se trata no Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (Iecac), no Humaitá. A unidade, referência no tratamento de doenças cardíacas de alta complexidade, tornou-se mais uma vítima da crise do estado.
Chegou ao fim, nesta quinta-feira, o contrato do Iecac com a empresa CientíficaLab/Dasa, dona do laboratório Sérgio Franco, que era responsável pelos exames dos pacientes do instituto. Em nota, o grupo Dasa informou que o contrato foi encerrado devido ao término da vigência contratual, “sem possibilidade de renovação”. Numa medida emergencial, entretanto, os exames continuaram a ser feitos pela empresa ontem.
De acordo com o diretor do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro (SinMed/RJ) Ronaldo Alves, a solução encontrada pelo estado foi fazer uma licitação de emergência para escolher a nova empresa.
— É uma irresponsabilidade fazer uma licitação em cima do laço. O laboratório que vai entrar precisa ter um tempo, porque vai implantar um sistema diferente, novos equipamentos, e ainda precisa capacitar os funcionários estatutários que colhem o material — diz Ronaldo.
A informação sobre a licitação emergencial não foi confirmada pela Secretaria estadual de Saúde (SES). Apesar de o laboratório ter informado que o contrato não pode ser renovado, a SES afirmou, em nota, que “todas as medidas para a continuidade do serviço foram tomadas”.
Apreensivos com a situação, funcionários da unidade não sabem como proceder diante da necessidade de marcação de novos exames. A preocupação é que o impasse provoque uma brecha na agenda de exames.
— Há um risco altíssimo para os pacientes caso a unidade fique sem exames. Se um paciente dá entrada no CTI com septicemia, por exemplo, e aquela bactéria não é identificada a tempo, ele pode ter complicações e acabar morrendo — explica Ronaldo.
Para Mara Lucia, a situação precisa ser solucionada:
— O instituto foi uma bênção na minha vida. Tive dois AVCs e um enfarte. Os médicos daqui me deram uma vida nova. A equipe do Iecac é maravilhosa, e a estrutura é muito boa também. É inadmissível que o estado use a crise como desculpa para sucatear mais uma unidade de saúde.
Respostas do governo estadual
– Hospital São Francisco
A Secretaria estadual de Saúde informou que o Hospital São Francisco está em processo de migração, passando do contrato de gestão por OS para credenciamento junto ao SUS. Assim, a unidade “passará a receber recursos do Ministério da Saúde que são destinados especificamente para transplantes”, o que “trará autonomia financeira para o hospital”. A secretaria não informou como ficará o atendimento a pacientes com HIV.
– Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (Iecac)
Ao contrário do que informou o Dasa, a Secretaria de Saúde afirmou que o contrato se encerra apenas nesta sexta-feira e acrescentou que tomou providências para que não haja interrupção do serviço.
– Hospital Getúlio Vargas
A secretaria informou que fez um repasse para a OS Pró-saúde, que administra o hospital, na última quarta-feira e negou a suspensão das cirurgias eletivas. Sobre a paciente Maria das Neves Oliveira, a direção do hospital afirmou que ela “foi acolhida e submetida à classificação de risco”. “A avaliação da equipe médica indicou que a paciente apresentava sinais vitais dentro da normalidade e, por não apresentar o perfil de atendimento de uma unidade de urgência e emergência de alta complexidade, foi encaminhada para a UPA Penha, que fica ao lado do HEGV, para atendimento”, completou a nota.
– UPAs
A Secretaria de Saúde informou que “não há desassistência aos pacientes quanto à falta de insumos e medicamentos, uma vez que os estoques para uso interno estão abastecidos”.
Fonte: O Globo