Na sala improvisada nos fundos do antigo Hospital São José, em Vitória, uma equipe de jovens médicos capixabas entrava para história da medicina. O mais velho do grupo tinha cerca de 30 anos. Apesar de ainda inexperientes, foram por mãos recém-saídas da faculdade que aconteceu o primeiro transplante de órgãos do Espírito Santo, há mais de 40 anos.
Naquele sábado, 26 de junho de 1976, a equipe do nefrologista João Chequer deu a uma mulher de 30 e poucos anos um novo rim.
O órgão, doado pelo irmão, enchia a paciente de esperança e abrandava o medo de um procedimento pouco falado no país.
“Nós fomos o sexto estado a realizar um transplante. Era uma cirurgia que não se conhecia em Vitória. Pensa em quantas pessoas morreram porque não conheciam o transplante”, frisou João Chequer.
Quarenta anos depois do primeiro transplante, o Espírito Santo ocupa o 12º lugar no ranking de procedimentos realizados no país, segundo o Ministério da Saúde.
Aqui são transplantados córnea, fígado, coração, osso, rim, medula óssea autóloga (quando o paciente recebe a própria medula, porém tratada). Até junho de 2016, 246 transplantes haviam sido realizados.
Conhecimento
A curiosidade pelo procedimento, que havia acompanhado anos antes no Rio de Janeiro, levou o nefrologista João Chequer a idealizar uma equipe de transplante no estado.
“A gente tinha uma disposição, essa coisa de jovem. Não foi dinheiro que motivou a gente, até porque não tinha retorno nenhum”, disse Chequer.
Foram meses de preparação, aprendizado e troca de experiência com outros estados. E foi em uma viagem a Londrina, no Paraná, que o cirurgião vascular José Monteiro, o urologista João Batista Valentim e o nefrologista Manoel Pio de Abreu Filho se deslumbraram com a cirurgia.
“Vimos dois transplantes em um dia. Era uma técnica bem primitiva, mas para época, extremamente atualizada”, disse Monteiro.
O transplante
Para realizar o primeiro transplante, os médicos contaram com o apoio da equipe do Paraná. Aproximadamente 10 profissionais participaram da cirurgia, que durou três horas.
“Era uma equipe multidisciplinar: urologista, angiologista e nefrologistas. Cada um só precisava fazer a sua parte e fazer bem feito. Foi uma emoção enorme quando no fim da cirurgia a paciente começou a urinar”, lembrou Monteiro.
Apesar do sucesso da cirurgia, a paciente faleceu um ano depois, com um quadro de pneumonia. O transplante dela, porém, foi o primeiro passo para que os outros fossem feitos e os médicos não pararam mais.
Realidade
Hoje, 1.098 capixabas aguardam um doador na fila de espera. Em 2015 foram realizados 478 transplantes, 210% a mais do que em 2001, quando ocorreram 148 procedimentos.
Entre janeiro e junho deste ano já foram feitos 246 transplantes, nove a mais que em 2015. Apesar disso, cerca de 40% das famílias não autorizam a doação em casos de paciente com morte cerebral, seja por medo ou falta de conhecimento.
A prática do transplantes de órgãos no Brasil é baseada em leis. Para ser doador, não é preciso deixar algo escrito, mas é fundamental que a família saiba do desejo da doação, pois cabe a ela decidir sobre isso.
“Diziam que a gente era louco, que não daria certo”
Apesar do pioneirismo, nem todos viam o transplante com bons olhos no estado. “Diziam que a gente era louco, que a pessoa ia morrer e não daria certo”, lembra o médico João Chequer. As dificuldades para realizar a cirurgia começaram logo nas buscas para aprender a técnica.
Na época, uma equipe do Hospital dos Servidores, no Rio, foi proibida de vir ao estado ensinar o procedimento.
“Aquilo deixou a gente muito decepcionado. Foi então que procuramos o pessoal de Londrina, e a equipe do doutor Altair Mocelin se dispôs a ajudar”, lembra o médico José Monteiro .
A desconfiança da comunidade médica não impediu a equipe de realizar o procedimento. Com as portas abertas no antigo Hospital São José , as primeiras cirurgias aconteceram. Anos depois, outros hospitais implantaram o procedimento.
“Levamos tempo para ganhar a confiança dos médicos, mas quando mostramos os resultados, a adesão foi positiva”, declarou o nefrologista Lauro Vasconcellos, hoje responsável técnico pela equipe de transplante do Hospital Meridional.
Desafios
Na época em que os primeiros transplantes aconteceram, as estatísticas apontavam que 30% dos pacientes perdia o rim em 5 anos, e outros 50% em 10 anos.
A criação do laboratório de Biologia Molecular e Imunogenética (LIG) no Espírito Santo, em 1980, revolucionou os transplantes clínicos.
“Os testes de compatibilidade, que eram enviados para o Rio de Janeiro, passaram a ser feitos aqui. Isso permitiu que depois de dois anos, o primeiro transplante com doador falecido fosse realizado no Espírito Santo”, disse a supervisora laboratorial do LIG, Márcia Biccas.
Desde o primeiro transplante, a evolução é notável. As técnicas de captação, remoção e cirurgia foram aperfeiçoadas. Mesmo assim, para quem realiza o procedimento há anos, o desafio é diário.
“É uma área desafiadora. Ainda existe rejeição, mas temos certo domínio sobre ela. Hoje a gente realiza dois transplantes por semana. Antigamente era um por mês”, finalizou Lauro Vasconcellos.
Fonte: G1