Fonte: O Globo
Um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rasgou o céu do Rio para buscar o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e levá-lo de casa a Brasília. Naquela segunda-feira, 21 de dezembro de 2015, Cunha comandaria uma das últimas reuniões de líderes partidários antes do recesso. O deputado embarcou às 9h15m no Aeroporto Santos Dumont, com mais oito caronas, e antes das 11h estava na capital federal. No comando da Câmara, função da qual está afastado por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), os voos de Cunha a bordo de um avião da FAB eram uma rotina.
No dia anterior, longe do universo burocrático dos políticos brasileiros, uma equipe médica de Cascavel (PR) diagnosticava a morte cerebral de uma adolescente de 17 anos, assassinada com uma facada no pescoço. A mãe não teve dúvidas, diante do diagnóstico, e aceitou doar coração, fígado, pâncreas e rins da filha. No topo da fila do transplante de coração estava o lavrador Firmino Pereira da Cruz, de 59 anos, internado numa UTI em Brasília. A ficha de doadora foi preenchida às 13h de 20 de dezembro. Uma equipe médica do DF se preparou para embarcar e buscar o órgão às 11h do dia seguinte. A FAB, porém, disse que não tinha condições de fazer o transporte.
Órgãos perdidos sem transporte
Firmino havia ingressado na fila do transplante em novembro. Só conseguiu um coração novo em 11 de janeiro deste ano. Debilitado pelos efeitos da doença de Chagas, o lavrador de Santo Antônio do Descoberto, cidade goiana vizinha a Brasília, morreu um mês depois.
— Os médicos nos diziam que o tempo de espera foi longo, que costumava ser menor. Na situação dele, o transplante era a única possibilidade de vida. Pelo menos estar numa fila proporcionou um tratamento melhor — diz Diógenes Pereira, de 23 anos, o filho caçula de Firmino.
— Sei que não puderam doar os olhos e o coração da minha filha. Não fiquei sabendo o destino de todos os órgãos, mas recebi carta de agradecimento por ter ajudado a salvar outras vidas — diz a mãe da adolescente morta no Paraná.
A recusa da FAB no caso de Firmino não foi fato isolado. Em três anos, entre 2013 e 2015, a FAB deixou de fornecer aviões para o transporte de 153 corações, fígados, pulmões, pâncreas, rins e ossos. Os órgãos saudáveis se perderam por conta dessas negativas e da falta de outras alternativas de transporte.
Os registros das recusas são feitos pela própria FAB e pela Central Nacional de Transplantes (CNT), do Ministério da Saúde, unidade responsável por fazer os pedidos de transporte e oferecer os órgãos às centrais de regulação nos estados. O levantamento foi obtido pelo GLOBO via Lei de Acesso à Informação.
O jornal obteve também os dias exatos em que a FAB recusou os pedidos. Nos mesmos dias, a Aeronáutica atendeu a 716 requisições de transporte de ministros do Executivo e de presidentes do Supremo, do Senado e da Câmara. A média é de cinco autoridades transportadas nas asas da FAB para cada órgão desperdiçado. Em 84 casos, ministros e parlamentares retornavam para casa ou deixavam suas casas rumo a Brasília. Quase 4 mil caronas foram dadas nesses voos.
O ritmo do transporte de autoridades, amparado por lei, é intenso. Somente no intervalo entre o preenchimento da ficha da adolescente do Paraná como doadora e o horário previsto para captação e transporte do coração, a FAB levou Cunha e outras quatro autoridades. O deputado George Hilton (PROS-MG), então ministro do Esporte, deixou Belo Horizonte rumo a Brasília. O então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, foi para Aracaju. Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, voou de Maceió a Brasília. O presidente do STF, Ricardo Lewandowski, de São Paulo à capital federal. As autoridades que usam aviões da FAB não são avisadas sobre a necessidade de usar o avião para captar um órgão.
Não há em sistemas da FAB registros de recusas a pedidos de transporte de autoridades. Já as negativas para transporte de órgãos aumentaram, entre 2013 e 2015, de 52,7% a 77,5% dos pedidos feitos. Para 153 “nãos”, a instituição disse apenas 68 “sims”.
A legislação brasileira não obriga a Aeronáutica a transportar órgãos para transplante. O que existe é um termo de cooperação envolvendo Ministério da Saúde, empresas de aviação comercial e FAB. Até hoje, não houve casos de recusa de companhias aéreas de transportar órgãos para o transplante. O transporte é encaixado nas rotas existentes e é feito gratuitamente. Apenas em 2015, 3,8 mil voos comerciais transportaram órgãos para serem transplantados.
A FAB é acionada nas situações mais críticas, em que não há como usar uma rota comercial e nos casos de tempos de isquemia curtos. Este é o prazo máximo possível entre a extração do órgão do doador e o enxerto no receptor. Para o coração e o pulmão, são quatro horas. A CNT sempre aciona a FAB nos casos de oferta de coração. Se não há receptor no estado onde o órgão foi doado — a fila de espera é nacional —, a central tenta fazer o coração chegar a outras regiões. Dos 435 pacientes que entraram na lista do coração em 2015, 145 (33,3%) morreram.
Na fila por um coração, Firmino estava no topo da lista, com recomendação de atendimento prioritário. O agricultor era analfabeto, vivia com a família numa chácara e convivia com o medo da morte. Os protozoários do mal de Chagas geram fibroses no coração. Firmino descobriu a doença na década de 1990.
— Meu pai foi internado definitivamente numa UTI em 22 de novembro do ano passado. Logo entrou na fila do transplante — diz Diógenes.
Firmino, família e médicos saíram otimistas da cirurgia feita em janeiro, quando um coração surgiu em Brasília. Mas uma infecção pulmonar mudou os prognósticos de recuperação. Após a morte do pai, Diógenes ainda não criou coragem para voltar ao hospital.
Aeronáutica põe culpa em verba
A Aeronáutica não tem verba para transportar órgãos. A informação é da própria instituição, em resposta enviada ao GLOBO. Segundo a Força Aérea Brasileira (FAB), não há repasses de recursos específicos para esse tipo de missão e, além disso, “as atuais restrições orçamentárias têm reduzido ainda mais a disponibilidade de horas de voo da Força”.
O jornal questionou se a FAB entende ser necessária uma obrigação legal para o transporte de órgãos. “Não há necessidade de se ter uma obrigatoriedade legal, entretanto devem existir os recursos necessários para a realização dessas missões. A FAB também atende diversas outras demandas da sociedade, como ajuda humanitária em casos de catástrofes naturais e epidemias”, respondeu a Força.
A Aeronáutica explicou por que transporta autoridades sem negar pedidos: “Para o transporte de autoridades há legislação específica que determina à FAB cumprir a missão. Para o transporte de órgãos não há.” E voltou a falar em falta de dinheiro: “A carência de recursos e os altos custos que envolvem a atividade aérea tornam difícil ter meios exclusivos para esse tipo de transporte.”
O Ministério da Saúde afirma que as recusas da FAB “não significam necessariamente o descarte”: “O órgão é disponibilizado pela central nacional novamente para os estados selecionados nas listas de espera, beneficiando o próximo paciente”, disse a pasta.
O ministério ressaltou que o número de transplantes no Brasil “está entre os melhores do mundo, sendo superior inclusive ao da Espanha, referência mundial na área de transplante“. “O número dobrou nos últimos dez anos, chegando em 2015 a 23.666 procedimentos. O Brasil é referência mundial em transplante, sendo o maior sistema público do mundo, com 95% dos procedimentos feitos no SUS e com o paciente tendo acesso à assistência integral”.
Transporte gratuito em aéreas
Acordos de cooperação com empresas aéreas, firmados desde 2001, garantem o transporte de órgãos destinados ao transplante. As obrigações de cada parte envolvida ficaram expressas nos documentos, que não têm força de lei. É uma situação diferente do transporte de autoridades nos jatos da Aeronáutica: um decreto de 2002 determina as viagens de ministros e parlamentares.
O Ministério da Saúde, por meio da Central Nacional de Transplantes (CNT), comprometeu-se a manter pessoal 24 horas por dia, todos os dias do ano, na sala de decisões do Centro de Gerenciamento da Navegação Aérea. Ali são tomadas as decisões sobre rotas da aviação comercial ou pedidos à Força Aérea Brasileira para o transporte de órgãos.
“A conjugação de esforços tem como fundamento o atendimento do interesse público de conferir celeridade no transporte de órgãos, com vistas a contemplar as situações de urgência e evitar os desperdícios de órgãos”, diz o acordo de cooperação de 2015.
A função das empresas é fazer o transporte gratuito de órgãos. A Aeronáutica é responsável por dar prioridade a pousos e decolagens das aeronaves e por permitir acesso de servidores da CNT à sala de decisões. A FAB argumenta que transportar órgãos não é missão atribuída à instituição, e que só o faz em aproveitamento de outras missões.
No caso de autoridades, o decreto 4.244, de 2002, determina o transporte do vice-presidente, dos presidentes de Senado, Câmara e Supremo e dos comandantes das Forças Armadas. Essas viagens podem ser motivadas por segurança e emergência médica, serviço e deslocamento para local de residência. Em abril de 2015, a presidente Dilma suspendeu a possibilidade de ministros viajarem nesses aviões para o local de domicílio. Voos de presidente e vice têm caráter sigiloso, por razões de segurança.
Bebê luta por um coração
De seus 9 meses de vida, Ana Kemely Albuquerque passou oito meses e meio dentro de um hospital, em Fortaleza. Ana Kemely é um bebê miúdo (pesa 4,5 quilos), com uma respiração cansada, mas “com muita vida nos olhos”, como diz a mãe, Ana Caroline Albuquerque, de 23 anos. A menina nasceu sem o lado esquerdo do coração. Sofreu paradas cardíacas sucessivas, uma convulsão, duas cirurgias. Está na lista de espera por um coração novo desde 20 de abril. Não pode esperar.
— No quarto dia de vida, ela sofreu a primeira parada. Ficou entubada. Soube da cardiopatia, que era algo gravíssimo. Ela passou um mês na UTI e fez a primeira cirurgia. Os médicos me disseram que ela poderia não sair viva de lá — diz Caroline, que vive com a filha e os pais na periferia de Fortaleza.
A fila de transplante de coração para crianças é arrastada. Faltam doadores, principalmente em razão da forte resistência de pais em doar órgãos no momento da perda de filhos crianças ou adolescentes. A falta de transporte para órgãos que surgem em outros estados e a corrida contra o tempo — são apenas quatro horas para o coração sair de um peito a outro — agravam este cenário.
O Ceará concentra filas de pacientes do Norte e de boa parte do Nordeste. Recife e Salvador dividem essa demanda. O governo local oferece aeronaves para buscar órgãos doados em Sobral e Juazeiro do Norte, populosas cidades cearenses, mas a medida não é suficiente. Praticamente não há captação de órgãos fora do estado.
Em 2014, a Central Nacional de Transplante (CNT) ofereceu pelo menos dois corações a Fortaleza, um doado em Campina Grande (PB) e outro em Natal. Mas não houve captação em tempo hábil por falta de transporte aéreo. A Força Aérea Brasileira (FAB) recusou-se a fornecer aeronaves.
As equipes médicas nos ambulatórios de transplante de coração e fígado de Fortaleza, que estão entre os maiores e mais importantes do país, têm como rotina não contar com órgãos de outros estados. A recusa é quase instantânea. Três médicos coordenadores dos ambulatórios dizem que a melhoria do transporte aéreo diminuiria o tempo de espera nas filas.
No ano passado, foram transportados em voos comerciais apenas 37 corações, oito pâncreas e dois pulmões, o que revela a dependência dos aviões da FAB no caso desses órgãos. Em 2015, segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), 236 pacientes estavam inscritos na lista à espera de coração. A fila tinha 49 meninos e meninas aguardando o mesmo órgão. As taxas de mortalidade foram elevadas: de 33,3% entre adultos e de 27% entre crianças.
O Brasil fez 353 transplantes de coração em 2015, sendo 33 em crianças. Apenas quatro entre dez pacientes pediátricos que entraram na fila no ano passado conseguiram um coração novo. Ana Kemely é a criança que entrou mais recentemente na fila por um coração no Ceará.
— Penso em tudo que ela já passou. Se ela não desistiu, eu não posso desistir — diz a mãe.
Segunda vez na lista de espera
Aos 14 anos, Afonso Rerison de Souza está pela segunda vez numa lista de espera por um coração. No Hospital de Messejana, em Fortaleza, ele conhece praticamente toda a equipe médica. É o mesmo hospital que conduz o tratamento de Ana Kemely.
A primeira vez na fila durou quase um ano. A mãe de Rerison, Antônia Aguiar da Silva, de 34 anos, decidiu retirá-lo da lista e retornar a Tianguá (CE), a 317 quilômetros de Fortaleza, porque estava grávida. O bebê, Francisco Antônio, já completou 1 ano e 9 meses, e a família está de volta à capital para Rerison esperar por um coração.
Rerison tem uma cardiopatia congênita considerada grave pelos médicos. A vida em Fortaleza o afastou da escola, dos amigos, do futebol e da bicicleta.
— Depois de receber o coração, eu queria ser jogador de futebol, mas sei que não posso. Aqui tinha um jogador de futebol que teve de parar de jogar — diz o garoto.
Para a médica Klébia Castelo Branco, do serviço de transplante cardíaco pediátrico, um incremento no transporte aéreo aumentaria “sem sombra de dúvidas” as chances das crianças. O Messejana fez nove transplantes de coração neste ano, dois em crianças. Para o médico João David Neto, coordenador da unidade de transplante de coração, a conexão com outros estados diminuiria a fila de espera:
— Se houvesse mais disponibilidade de aeronaves, a lista seria reduzida.
‘Sem FAB não tem coração’
Pacientes da fila de espera por um coração em Brasília tiveram pelo menos três oportunidades de transplante no fim de 2015, todas elas perdidas por falta de aviões da Força Aérea Brasileira para transportar a equipe de captação. Em um dos casos, o órgão surgiu em Goiânia, a 220 quilômetros da capital federal, e mesmo assim não foi aproveitado.
Os três casos foram um prenúncio do que ocorreria no primeiro dia de 2016. A FAB se recusou a buscar um coração saudável em Pouso Alegre, Minas, para ser transplantado em Gabriel Langkamer, de 12 anos, internado na ocasião em uma UTI em Brasília. O menino morreu 14 dias depois. A história foi revelada pelo GLOBO em janeiro.
A divulgação do caso de Gabriel levou a uma investigação na Procuradoria da República no Distrito Federal. Depois de três meses de apuração, o MPF entrou com uma ação civil pública, pedindo que a FAB sempre providencie o transporte quando surgir uma oferta de órgão. Em 22 de abril, uma decisão judicial concordou com a ação e determinou, em caráter de máxima urgência, que o governo providencie o transporte para o transplante de órgãos.
A ação do MPF reproduziu o diálogo entre uma enfermeira da central de regulação de transplantes do DF e uma funcionária da Central Nacional de Transplantes (CNT), que havia solicitado a um militar da FAB, sem sucesso, transporte para buscar o coração no interior de Minas. A servidora contou: “Ele até falou: ‘Essa semana cês pediram três vezes’. E eu falei: ‘Pois é, e três vezes fui eu.’ E três vezes…”
A enfermeira completou: “E as três vezes foi a recusa. Coração só pode ser com FAB. Sem FAB não tem coração.”
O GLOBO analisou três recusas de transporte pela FAB no fim de 2015. Os corações, de fato, haviam sido ofertados para os pacientes de Brasília. A primeira recusa ocorreu em 16 de dezembro. O coração surgiu em Lages (SC) e foi ofertado à central do DF. Faltaram meios para transportá-lo. Depois, um novo órgão surgiu em Cascavel (PR) no dia 20, com possibilidade de captação no dia seguinte. Se houvesse transporte, um dos destinatários seria o agricultor Firmino da Cruz, que estava internado numa UTI em Brasília.
Foto: G1